Mestre de Catarina de Cleves

Spoilers

Em processo

09.03.17

Estou desenvolvendo há alguns anos um conjunto de poemas intitulado Spoilers, dentro do meu trabalho de doutorado. Costumo pensar a criação de um livro de poemas como uma espécie de quebra-cabeça com um número desconhecido de peças, e no qual cada uma deve oferecer todo um sentido por si mesma. Dependendo da maneira como se combinam, podem formar figuras maiores, ainda que sutis, por convergência ou contradi(c)ção, dentro da imagem total do quebra-cabeça. Assim, à medida que vou criando, me obrigo a um movimento contínuo de desencaixe e reencaixe das peças que já existem. Ao que tudo indica, faltam poucas.

 

Preâmbulo para um poema tardio

 

Ir para o inferno toma tempo

à cata do incidente emaranhado

toma tempo e trinta e tantas

tentativas, primeiras palavras

pedidos de desculpa e demissão:

ricocheteios de cascalho

na superfície da memória.

Não basta boa vontade

para chegar ao inferno

é preciso o reflexo condicionado

de não estar pensando e de repente

estar: voltar a si, se descobrir

antes da próxima rodada

durante um jogo de tabuleiro.

Também estudo insistente

sobre circunstâncias agravantes

suscetibilidades compatíveis

com as dimensões e o caráter

irrevogável do incidente:

o inferno, afinal, é dos autodidatas

não dos autocomplacentes.

Diante da ausência de um guia

adequado à faixa etária

e aos índices de umidade

a disposição ao segredo, ao resta um

da existência é requerida:

o resto é vade retro e tira-gosto

de luto, vitamina c e cama.


Memorabilia II

 

Numa década em que estive

esgotaram-se as avós.

 

Guardei da primeira o clarão

na janela, de través

déjà vu de um travesseiro

da segunda chinelos de lã

arrastados rastelando

cada dia, cada dia.

 

Esgotaram-se as avós

em dez anos: uma antes dos trajetos

no banco – éramos três – de trás

do corcel azul cobalto

galopando a três-oito-meia

e o lombão da Medianeira

antes das temporadas

dos temperos de Cidreira

– céu de brigadeiro, mar de chocolate

nescau com açúcar na cama

vinagre espargido nas costas –

antes das tardes de temporal

– pijama, pipoca e pitfall –

no tapete verde da sala

a outra durante o trajeto

sem fim atrás do doutor

que devia

– só podia –

estar brincando

de esconder

 

e ganhou.


Fuga

 

Por exemplo, cavar com o dedo indicador

contrariamente à direção da luz.

Romper películas de vidro transparentes

campos elétricos, cristais, diodos

doidos, transistores.

Sentir na epiderme os tristes eletrodos

o lodo de íon-lítio, condutores, semicondutores

no dedo que entra fundo na ferida

traindo a memória untada de filtros, frases feitas

editadas, excluídas por remorso

e segundas intenções

deixando escorrerem as horas

perdidas, a rotina com script, as opiniões

sobre tudo e sobretudo as risadas

pré-moldadas e outras onomatopeias emotivas.

Destroçar contatos, causas, compromissos

agendados, simplesmente ir em frente

e depois da casca pouco espessa de alumínio

emergir do outro lado: eis um furo

real no muro virtual.

Acordar sobressaltado ao som dos pintassilgos

programados

tomar ar, entender que foi um bug

apenas, um sonho ruim, um mecanismo

inconsciente, contingente

e acariciar a areia movediça iluminada

(quem sabe dez minutos

de sono tranquilo?)

da tela touch screen.


Praça de alimentação

 

A vida – esse burrito de argamassa

que a gente vem comer com fome e pressa

e para digerir leva um bocado

O tempo – esse temaki de água-viva

um cone algodoado feito luva

que a mão humana nunca é que se livra

O ser – essa salada contingente

de folhas frutas brotos

chochos de esperança

A lógica – esse hambúrguer carbonato

de sódio lítio glúten glutamato

e uma porção pequena de poliestireno

A moral – essa pasta nada à moda

escalopes ao molho madeira e talheres

pretos plásticos embalados

A razão – essa torre de chopp

esse xarope útopico

gaseificado

A ética – esse suco descartável

polpa de água batida

em copo ecológico certificado

A fé – esse café de águas passadas

por cápsulas viçosas de alumínio

aos pingos espartanos de aspartame

A metafísica – essa paleta intraduzível

palito enobrecido

entorpecido de recheio

O cosmo – esse amontoado de pequenos sóis

com tampo de granito onde orbitamos

acenando ansiosos para sermos vistos

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