Tendo nascido nos anos oitenta, minha formação como leitor se deu em bancas de revistas, comprando Pato Donald e Superinteressante. Tupinilândia é um pouco sobre isso, sobre uma infância que parece colorida e divertida quando vista em retrospecto, exceto que o país era uma ditadura, a violência urbana era tão ou mais forte que a atual, AIDS era uma palavra proibida e a economia ia tão mal quanto o casamento dos meus pais. Me pareceu natural que a ação de Tupinilândia deveria se dar no ano em que nasci, com a explosão de uma banca de revistas.
Dona Lyda era considerada por seus colegas de trabalho uma pessoa sensível, bem-humorada e senhora de uma capacidade prodigiosa para detalhes — motivo que a fazia ser tida como a memória viva do escritório. Aos dezesseis anos, sua mãe lhe dera alguns trocados para o almoço e quatrocentos réis para a passagem na barca de Niterói, prestes a começar num emprego novo que seria o mesmo lugar onde, quarenta anos depois, continuava trabalhando: a sede carioca da Ordem dos Advogados do Brasil. Naquele início de tarde de agosto, estava a três meses de completar sessenta anos, e por muito tempo adiara a ideia de se aposentar. Não podia conceber sua rotina sem o movimento do escritório ou a companhia dos colegas, mas agora a idade começava a cobrar seu custo, com as inevitáveis dores que trazia. Consultou o relógio: dez para as duas da tarde. Abriu uma gaveta em sua mesa e nela guardou o livro que vinha lendo — tinha o hábito de selecionar passagens interessantes de textos e poemas lidos, redigi-los e entregá-los aos colegas. Ela era dessas pessoas que gostava de ser gentil com os demais. Consultou o relógio: quase duas da tarde. Dali a pouco o pessoal retornaria do almoço. Ocorreu-lhe verificar se havia café passado na cafeteira.
Quando ela própria voltava para sua mesa com uma xícara em mãos, entrou um rapaz na sala. Tinha cerca de trinta anos, vestia calça e camisa social do mesmo modo que tantos outros nos escritórios ao redor. Entregou um envelope de papel pardo, endereçado ao doutor Seabra Fagundes, chefe de dona Lyda. Ela perguntou se precisava assinar algum protocolo de recebimento, o rapaz disse que não e foi embora. Ela soprou o café e bebeu um gole. Ainda estava muito quente. Seu chefe era um dos principais defensores da anistia aos exilados políticos da ditadura, mas estava fora da cidade. Ela concluiu que seria melhor abrir logo o envelope e verificar sua urgência, antes de deixá-lo na sala do doutor Seabra. Correu os olhos pela mesa, em busca de uma caneta. Escolheu uma de metal, mais resistente. Abriu o lacre do envelope.
A mesa de dona Lyda encontra-se hoje exposta no memorial da sede da OAB de Brasília, recomposta e envolta numa faixa com as cores da bandeira nacional. O impacto que a rachou ao meio também arrebentou os vidros da janela, derrubou pedaços de reboco do teto, que ficaram pendurados por fios elétricos em curto-circuito, e deixou a sala destruída. A explosão da carta-bomba em suas mãos fez com que dona Lyda tivesse o braço arrancado, além de uma série de outros ferimentos graves, vindo a falecer pouco depois a caminho do hospital.
Em abril de 1981, Tiago Monteiro caminhava pelas ruas do Rio de Janeiro sob o peso de uma desilusão amorosa, uma onda de crimes assustadora, e enfrentando uma inflação de 110% com um salário de jornalista iniciante. Tinha vinte e quatro anos e viera trabalhar naquela cidade movido por um relacionamento. Agora que acabara, não havia sol ou praia que o prendesse ali, somente a inércia na vida pessoal e a falta de vontade de regressar à cidade de onde viera, Porto Alegre.
O país se encaminhava para a abertura política. A economia, para o abismo dos empréstimos do FMI. A saúde pública, para a epidemia da Aids. E ele, para a banca de revistas onde costumava comprar regularmente o Pasquim e o Pato Donald.
Do outro lado da rua, havia um carro parado em frente à banca, e um senhor grisalho estava agachado ao chão, parecendo procurar por algo. Pensou em ajudá-lo, mas o sinal fechou e o trânsito se colocou entre os dois. Fosse lá o que procurasse, o homem não pareceu encontrar, pois entrou de volta no carro de mãos vazias e foi embora. Tiago observou o Voyage dobrar a esquina, mas estava mais atento ao semáforo. O sinal abriu, Tiago atravessou a rua e chegou em frente à banca. Estava fechada, o que era incomum para o horário. Decidiu que iria tomar um suco e voltaria mais tarde.
Mal pensou em dar meia-volta, quando a banca explodiu.
Tiago se agachou com o susto, perdeu o equilíbrio, caiu sentado. Pessoas correram. Fumaça, gritos, cheiro de papel queimado, folhas de jornais e revistas atirados para o alto. Em meio a tudo isso, uma página ziguezagueou manhosa e chamuscada pelo ar à sua frente, indo pousar aos seus pés. Era a capa de uma edição recente da revista Manchete. A chamada, “Uma bomba contra a abertura”, repercutia o atentado do Riocentro no começo do ano. Ao lado da chamada, o rosto louro e sorridente da nova namorada de Pelé era anunciado como símbolo sexual da década que se iniciava.
Atentados à bomba vinham sendo uma constante nos últimos anos, desde que os militares anunciaram o processo de abertura política. Tiago não tinha como saber, mas a dona daquela banca de revistas vinha recebendo bilhetes com ameaças, caso continuasse a vender jornais e revistas de esquerda — como o próprio Pasquim que Tiago pretendia comprar. Naquele dia, tendo recebido mais uma ameaça, a mulher fechara a banca e levara o bilhetinho para o Deops. A resposta foi a explosão de sua banca. De um modo supersticioso que nunca soube explicar muito bem nem para si próprio, Tiago guardou aquela página chamuscada da revista Manchete como um amuleto. No dia seguinte, pediu demissão da redação de O Globo e decidiu voltar para Porto Alegre.