Nunca mais outra vez noutra sombra

Em processo

29.11.17
Sempre que escrevo um livro deixo título provisório na gaveta do criado-mudo: sei que mais cedo, mais tarde, aparece o título definitivo. Foi o que aconteceu dois meses atrás quando atravessava uma rua de São Paulo. Calor infernal. Fico ao lado de poste cuja sombra tinha meio metro, mais ou menos. De repente, moça-morena-bonita pega carona nela, minha sombra. Ela percebe a invasão. Sorri. Sinal abre. Ela atravessa a rua correndo. Eu fico. Abro minha sacola de pano, pego papel, caneta e anoto: Nunca mais outra vez noutra sombra. Este meu novo livro. São minicontos, aforismos, epigramas, fragmentos. Jeito que encontrei para me  livrar, temporariamente, talvez, do romance. Devo enviar originais para a Record até o fim do ano.

 

NARCISO ÀS AVESSAS

(Título pouco reflexivo; intento frustrado, ad gloriam: já nasceu-começou fazendo água)

Eco não me ludibriaria: sou desconfigurado; trangalhadanças; transgrido a simetria. Feição-semblante opaco; logo, imagem não apresentaria reflexo em fonte alguma – mesmo de excessiva transparência. Jamais me extasiaria, jamais me arrebataria pela imagem que avistaria ante mim mesmo. Fui talhado para nascer anterior aos riachos.

 

CONSTRANGIMENTO

(Título embaraçoso, inconveniente, desguedelhado, surge de súbito contra a vontade do próprio autor)

Aos cochilos, sozinho no quarto, ouço, inesperado, tropéis de cavalos no corredor – quatro equinos, talvez. Alguns relinchos. Lufa-lufa hípico. Pelo vozerio são quatro cavaleiros – apocalípticos, possivelmente. Fico agachado num canto do cômodo: ainda é cedo demais para empreender galopes metafísicos. Percebo que todos, cavalos-cavaleiros, estão extenuados, ofegantes – viagem longa: o Hades fica nos confins da terra, onde o diabo perdeu as botas, se é possível neste traumático momento lançar mão de expressão que dá margem a diversas interpretações. Eu? Trêmulo, impregnado de temores bíblicos – eclesiásticos, talvez. Não: eles não ouvem meus soluços, meu torpor. Constrange espreitar a Peste e a Guerra e a Fome e a Morte de cócoras.

 

MONÓLOGO

 (Título que abre mão de ressonâncias, atafulhado de letras bufas, pantomímicas)    

Saí de casa – não havia diálogo: ela não me ouvia de jeito nenhum; mas agora vai ouvir minha ausência.

 

CANSAÇO

(Título balbuciante, capenga, reumático, carente de altiveza, propenso aos atrofiamentos) 

Perguntas-respostas evasivas – bancarrota do silêncio. Parlatório, ruge-ruge, coscuvilhices a mancheias. Mentes confusas. Percebe-se que até a alameda, ali, debate-se na incerteza, anda às apalpadelas sobre sua própria condição arvoreda. Tatibitates florescem, se ramificam cidadela fora. Eu? Acostumei-me, adquiri o hábito de deixar o ímpeto no fundo da gaveta do criado-mudo. Difícultoso disfarçar vez em quando… disfarçar-abafar no bolso da algibeira os eflúvios de minha fúria contra tudo-todos: gatos, cachorros, gente, árvores, pássaros… também acalento certo ódio fulgurante por mim mesmo, mas ainda não ultrapassei o pórtico do desengano – do cansaço, sim.

 

PALAVRAS EM PERIGO

(Título aventuroso, periclitante, levanta desvantagem, resignante inclina-se à vontade do autor)

Jacaré, filhote ainda, mora aqui dentro dela, minha sacola de pano, na qual carrego sempre também um caderno de anotações, algumas canetas. Sempre que retiro um desses objetos para meu trabalho diário, perco uma lasca, tiquinho de nada da ponta de um deles, meus dedos: é temerário apalpar as palavras.

 

SÚBITO SILÊNCIO MÚLTIPLO

(Título desditoso, transpassado de dores, sombrio, trevoso – letras aflitivas desaguam na palavra tristeza)

Mesmo praticando abstrações metafísicas, mesmo vivendo às ocultas, recolhido em mim mesmo, recuso-me a ficar alheio aos tempos da exasperação. Não deveria dizer, segredo, mas vou contar-confiar em você: encontrei tempos atrás, num baú, herança materna, o anel de Giges – esgueiro-me quase sempre nos meandros do acabado-de-fazer, do inovador, lançando mão do poder da camuflagem, do imperceptível. Escuto-ausculto o lufa-lufa vertiginoso da inquietude humana-urbanística, na qual palavras se entrelaçam no burburinho oblíquo do não-tem-sentido: tufos de palavras que se juntam atabalhoadas, tremeluzentes – mexerufada urbe-verbal. Amiúde um silêncio fogo-fátuo: última pá de cal – vez em quando, sempre invisível, acompanho de perto algum sepultamento.

 

SÍNTESE

(Título circunstancial, efêmero, provisório –  conforme as circunstâncias, a ocasião, o momento)

É tempo de explorar, aventurar-se, deitar as mãos sobre a síntese. Hoje cedo quase amei alguém. Síntese é a pele, película dela, minha vida. Depois de deitar âncora neles, meus setenta anos de existência, três dias atrás, fim do dia, quase dei certo – ainda não foi dessa vez. Síntese: invólucro delas, minhas palavras. Semana passada quase concluí o haicai, o mais conciso de todos os haicais de todos os tempos – faltou-me aquela palavra, a fatal, a última thule, o vocábulo-completório do haicai definitivo. Pena: ele, eu, nos conformamos com nossa própria condição capengante. Síntese: substratum, laminagem dela, minha moral. Ontem, de tardinha, senti neles, meus lábios, o gosto da retidão: recusei-me a beijar a boca da mulher do meu irmão.

 

TRANSUBSTANCIAL

(Título transmigratório, afeito aos deslocamentos; troponômico: poderá emprestar de súbito novo colorido ao seu aparente contexto)

Vida toda refém dos dilaceramentos, das erupções internas tantíssimas, em assombrosa quantidade; repreensões ancestrais: linhagem atafulhada de raízes carunchosas, galhos de discordantes florescências, frutos das próprias arbitrariedades arborais: antepassados longínquos já deitaram abaixo (numa assombrosa devastação) florestas inteiras. Preciso transubstanciar a própria alma – reencarnar-me num touareg – vida nômade; estrotejar, fugir a galope sobre terras áridas, despovoadas, desérticas: metamorfose-vingativa-reencarnacionista. Por enquanto, acepilho, cuidadoso, minhas ausências de enobrecimento genealógico.

 

 

(Fragmentos que, condescendentes com o autor, abrem mão de títulos, livrando-se de obviedades, por assim dizer, abscônditas)

Aquele zumbi, ali, é Lucílio – parece que não entendeu direitinho a metáfora dele, seu mestre Sêneca: Acabar a vida antes de morrer.

 

***

 

Condutas às vezes ignóbeis, às vezes bizarras, ultrapassando o pórtico do ridículo.  Se ele fosse pequeno município, mereceria o epíteto de Cidadela das Inconsequências, cuja topografia já havia nascida inapropriada, repleta de becos e vielas desconcertantes. Continuando dentro do perímetro da analogia, é sensato dizer que tal lugarejo desapareceu submerso à semelhança de minúscula Atlântida: ele, nosso bizarro personagem, morreu afogado ontem pela manhã num riacho a dois quilômetros daqui.

 

***

 

Desencantos profusos se acumulavam atafulhando de glórias seu currículo místico. Com o tempo, tudo se tornou para ele mesmo rudimentar, tosco. Nos primórdios, seus desfeitiçamentos deixava-o cada vez mais desvanecido, orgulhoso consigo próprio – até que o encanto se virou contra o desencantante: o rei dos desfazedores de feitiço transfigurou-se no príncipe das trevas.

, , , , , ,