O diretor e produtor David Fincher

O diretor e produtor David Fincher

Crime verdadeiro

Televisão

06.12.17

Houve uma época em que a expressão serial killer não queria dizer nada e não passaria pela cabeça de ninguém criar uma série de tevê para celebrar assassinos, como Dexter, Bates Motel ou Hannibal. Eles podiam ser retratados com humor negro, como Jason Voorhees, dos filmes Sexta-feira 13, ou Freddy Krueger, de A hora do pesadelo, mas os crimes em geral eram caricatos e o que se via na tela do cinema, povoada de criaturas sobrenaturais, pouco tinha a ver com a realidade sombria dos assassinatos em série da vida real. Então Seven – Os sete crimes capitais, filme do diretor David Fincher, foi lançado em 1995.

Não que fosse o primeiro a tratar o tema de uma forma mais séria. Manhunter, de Michael Mann, primeira aparição de Hannibal Lecter, é de 1986, mesmo ano do cru e excelente Henry: Retrato de um assassino, de John McNaughton. O silêncio dos inocentes, de Jonathan Demme, foi lançado em 1991, quando Bret Easton Ellis também publicou o romance O psicopata americano. Alfred Hitchcock (Frenesi, 1972), Terrence Malick (Terra de ninguém, 1973) e até Charles Chaplin (Monsieur Verdoux, 1947) produziram filmes sobre serial killers.

Foi, no entanto, a abordagem niilista – e noir, gótica, existencial – de Seven que recriou o gênero. Os ecos do filme, com dois personagens, interpretados por Morgan Freeman e Brad Pitt, presos nos becos sem saída de uma investigação de um assassino serial e a discussão sobre a violência na natureza humana, são detectáveis em boas séries atuais, como True  Detective e The Fall. O psicopata, o hoje caído em desgraça Kevin Spacey, numa atuação magistral, não é sofisticado e um tanto charmoso, como Hannibal Lecter. O maior atrativo é a indiferença obscura com que realiza seu intento. Era um novo tipo de vilão, que não se importava com ninguém.

Mas 22 anos depois de Seven, os assassinatos em série já foram explorados sem limites. O já citado Dexter retalhava até mesmo outros serial killers e a violência de verdade é a  especialidade do Discovery Investigation, canal dedicado a exibir 24 horas por dia reconstituições de crimes reais em programas como “Segredos obscuros”, “Vizinho assassino” e “Suspeito improvável”. A morte quase não choca mais ninguém.

Diante deste cenário saturado, o que ainda restaria a ser contado sobre serial killers?

A resposta de Mindhunter é voltar ao ponto em que eles ainda não existiam. Produzida por David Fincher e Charlize Theron, a série, que estreou em outubro no Netflix, se passa em  1977 para contar como a ciência criminal aprendeu a classificar estes assassinos. A classificação, com categorias como “organizado X desorganizado” e tipos de cena do crime e vítimas, ainda é usada pela polícia nos Estados Unidos e em outros países na investigação de serial killers. A chave para criá-la foi a série de entrevistas realizadas com vários psicopatas na prisão a partir do final dos anos 1970 por dois ex-agentes do FBI, John E. Douglas (que serviu de inspiração para a agente Clarice Starling de O silêncio dos inocentes) e Mark Olshaker.

Na série, baseada no livro Mindhunter: Inside the FBI’s Elite Serial Crime Unit, escrito pelos dois ex-policiais, os agentes são Holden Ford (Jonathan Groff) and Bill Tench (Holt McCallany), perdidos, como o resto da polícia da época, nas investigações sobre um novo tipo de assassino, que ataca vítimas desconhecidas. Hoje a internet está saturada de informações sobre eles, mas quatro décadas atrás as explicações eram simplesmente de que os assassinos em massa, como eram chamados, são malignos. Entender o que motiva gente como Charles Manson – que comandou o massacre de sete pessoas, inclusive a atriz Sharon Tate, grávida de oito meses e meio, em 1969 – leva a dupla de agentes a se juntar à psicóloga Wendy Carr (Anna Torv) e iniciar as entrevistas.

Ainda que os créditos da série fiquem com o roteirista Joe Penhall, de A estrada (2009), o projeto é mesmo de David Fincher. Além de responsável pelo roteiro final, ele dirigiu os dois primeiros e os dois últimos episódios da temporada, os melhores. Um envolvimento muito maior, por exemplo, do que teve em House of Cards, a outra série do Netflix que produziu, na qual apenas dirigiu o primeiro episódio.

Seja pela mão do diretor ou do roteirista original, o clima remete a alguns filmes de Fincher, principalmente Zodíaco (2007), também sobre um serial killer. Uma marca de seus filmes mais autorais sempre foi o desencanto perante a face sombria da humanidade. Isso Mindhunter tem a oferecer. A história demora um pouco a engrenar, assim como às vezes irritam diálogos arrastados, as infinitas trapaças burocráticas e, principalmente, o namoro sem sentido entre Ford e a universitária Debbie (Hannah Gross), que parece colocado na história só para fazer o agente não parecer tão bonzinho.

Todos os entrevistados existiram de verdade, formando um grupo de figuras dementes e absurdas como Ed Kemper, o “assassino de colegiais”, Jerry Brudos, um tarado por sapatos femininos, e Richard Speck, que matou oito estudantes de enfermagem na mesma noite no dormitório de um  hospital. Nos encontros com eles, Holden, rígido e idealista, é especialmente afetado. Mas Tench, no papel-clichê do policial durão e cético, também não sai ileso.

Em tempos de radicalismos políticos e de Donald Trump presidente dos Estados Unidos, não passam em branco as mensagens para o mundo de hoje. Para entender os serial killers, foi preciso que policiais parassem de vê-los  apenas como pessoas más e se dedicassem a entender sua complexidade. Uma lição para o debate que muitas vezes define adversários conforme as noções de bem e de mal.

É como Bill Tench diz ao parceiro no primeiro episódio, que se passa em um momento político tenso, depois de Watergate e da derrota no Vietnã: “Nossa democracia está desaparecendo. E virando o quê?”. Nessas horas todos se voltam para o salvador, que, com sorte, é alguém como  Holden Ford. Mesmo Holden, todavia, pouco consegue diante da própria humanidade.

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