O ano cinéfilo começa muito bem com Acima das nuvens, de Olivier Assayas, um filme tão denso de sugestões e significados que vamos nos limitar aqui a seguir apenas alguns fios de sua rica tapeçaria.
Há, no centro de tudo, uma atriz madura e consagrada, Maria Enders (Juliette Binoche), sondada para atuar numa nova montagem da peça teatral em que estreou vinte anos antes, Maloja Snake. Só que agora, em vez da jovem sedutora Sigrid, ela faria o papel da executiva quarentona que se apaixona por ela e é destruída na relação.
Relação e movimento
“Relação” é uma das palavras que definem o modo de construção de Acima das nuvens (e, de resto, de todo o cinema de Assayas). São as conturbadas e ambíguas conexões de Maria com os outros personagens que conduzem a ação, cada uma delas ganhando o primeiro plano em algum momento.
Ora o vínculo destacado é o de Maria com sua assistente Valentine (Kristen Stewart), ora com seu velho colega Henryk Wald (Hanns Zischler), ora com a jovem estrela Jo-Ann Ellis (Chloë Grace Moretz), que fará o papel de Sigrid na nova montagem – isso sem falar de personagens importantes que nem sequer aparecem, como o ex-marido de Maria e o dramaturgo Wilhelm Melquior, autor de Maloja Snake.
É essa teia de relações que molda a personagem e a situa no mundo, tendo como uma espécie de espelho invertido a própria trama da peça teatral, que ficamos conhecendo aos poucos ao longo do filme.
A outra palavra-chave para definir Acima das nuvens é “movimento”. Todas as relações citadas estão em permanente processo de transformação, e aparecem de uma nova forma dependendo do ângulo em que são mostradas.
Não por acaso, o filme já começa “em trânsito”, no trem que leva Maria e sua assistente para Zurique, onde o recluso escritor Melquior será homenageado in absentia. A atriz, sua velha amiga, deve receber um prêmio em seu nome e fazer um discurso de louvor. Ocorre que, durante a própria viagem, chega a notícia da morte súbita de Melquior, o que dará um novo tom ao evento e a todo o drama.
Fundo e figura
Essa sequência inicial é exemplar: de acordo com o movimento do trem, a imagem é oscilante, truncada, com os personagens saindo ocasionalmente do quadro pelas beiradas – o que condiz plenamente com as entrecortadas conversas ao celular de Maria e Valentine. Nesses poucos, agitados e fragmentados minutos, entram em cena todos os principais temas a ser desenvolvidos no par de horas seguinte.
Que mais se pode dizer desse filme admirável? Que, a exemplo do que fizera em Horas de verão, Assayas entrelaça aqui à trajetória dos personagens um retrato muito preciso e incisivo dos tempos que vivemos, com destaque para as relações nem sempre pacíficas entre a velha cultura europeia e a voracidade das novas mídias, das novas formas de consumo e espetáculo. Valentine é, para Maria, a ponte entre esses dois mundos, o que corresponde, na trilha sonora, ao trânsito entre o barroco de Pachelbel e o rock do Primal Scream.
Há humor, sagacidade e melancolia nesse retrato em que fundo e figura não se descolam em momento algum. Há também um diálogo desenvolto com um repertório literário e cinematográfico que vai de A malvada (de Mankiewicz) e As lágrimas amargas de Petra von Kant (de Fassbinder) à recente saga Crepúsculo (que lançou Kristen Stewart ao estrelato).
Há sobretudo uma visão dos indivíduos como seres em permanente construção, reafirmando a ideia do Riobaldo de Guimarães Rosa de que “as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas”. Para isso, ajuda contar com uma atriz esplêndida e corajosa como Juliette Binoche. Mas diante dela, é preciso reconhecer, a valente Kristen Stewart não se intimida e nem passa vergonha.