No deserto do tempo: Patricio Guzmán e Nostalgia da luz

Cinema

12.01.15

Norte do Chile, deserto de Atacama, mancha de cor ferruginosa no azul do planeta – dois mil metros de altitude, umidade zero. Lado a lado, grandes máscaras humanas gravadas na pedra lisa da montanha cerca de oito séculos antes de Cristo, construções brancas com cúpulas esféricas dos observatórios astronômicos da metade do século 20 e casebres da mina de cobre do século 19 – na época de Pinochet cercadas de arame farpado e transformadas em campos de concentração para presos políticos.  O passado da América parece saltar aos olhos na aridez do deserto – os antropólogos se servem do ar fino, frio, seco, que mumifica restos humanos e preserva desenhos e objetos, para estudar as populações que cruzaram os rios de pedra três mil anos atrás. As estrelas parecem ao alcance das mãos no céu do deserto – os astrônomos se servem de enormes telescópios para vasculhar o espaço em busca de sinais da origem do universo, quinze milhões de anos atrás. A história recente parece ao alcance das mãos no chão do deserto – parentes de presos políticos se servem de pequenas pás de jardinagem para vasculhar a areia em busca de fragmentos de ossos do filho, do marido ou do irmão, mortos ali, enterrados ali, desenterrados e jogados no mar ou num outro ponto do deserto, quarenta anos atrás.

Cena do filme Nostalgia da luz.

Entre a obstinação trágica dos que buscam corpos de parentes “desaparecidos” durante a ditadura e a determinação metódica dos que estudam os corpos mumificados ou buscam sinais de corpos celestes, Nostalgia da luz propõe o deserto como uma metáfora do tempo. Diz: o presente não existe, vivemos atrasados, o agora ocorreu no passado. “Toda a experiência sensorial que temos na vida, inclusive essa conversa, acontece no passado. Um milésimo de segundo, mas no passado”. No observatório do deserto, o astrônomo conversa com o diretor: “Distante uns tantos metros, a câmera está um milésimo de tempo atrás, no passado. Uma fração muito pequena de segundo, pois a velocidade da luz é muito rápida, mas demora um certo tempo para chegar. A luz da Lua tarda pouco mais de um segundo para chegar à Terra; a do Sol, oito minutos; nada se passa no instante em que se vê. O que vemos já é passado. O presente não existe. O que chega aos olhos é a memória dele. O único presente absoluto seria o que tenho em minha mente. Minha consciência é o que mais se aproxima de um presente absoluto”. E conclui “o passado é a grande ferramenta dos astrônomos, estamos acostumados a viver atrasados”.

Na conversa, digamos assim, a informação objetiva não existe. O que chega aos olhos é uma construção poética. A estrutura que organiza o todo dá novo significado às partes. A fala do astrônomo sobre a grande ferramenta dos astrônomos aparece num contexto em que as palavras soam como uma imagem: o passado é a grande ferramenta dos chilenos, estamos acostumados a viver atrasados. Assim, como essa, as outras conversas do filme – com o antropólogo, com os sobreviventes do o campo de concentração de Chacabuco, com os parentes dos presos mortos –, e mesmo as reflexões sussurradas pelo narrador, todas as conversas, enfim, situam espectador num tempo de busca, ali, no passado presente diante dos olhos, do muito longe ou do muito perto no tempo. As engrenagens dos telescópios que entrecortam as falas com movimentos lentos transformam-se numa metáfora do mecanismo do olhar cinematográfico e do trabalho da memória.

Cena do filme Nostalgia da luz.

Nos desenhos de lhamas, pássaros e figuras humanas gravadas nas pedras, a memória dos povos que viveram no deserto, milênios antes. Miguel, no campo de prisioneiros, durante o dia, contava passo a passo as dimensões do cárcere para desenhá-lo à noite, à luz das estrelas, destruir os desenhos antes do amanhecer, mas guardá-los na memória para poder redesenhá-los anos depois, recuperada a liberdade. Victoria, no chão do deserto, conta que ao encontrar uns poucos ossos do crânio de José recompôs na memória o olhar do irmão. Gaspar, no telescópio, diz que recebe a memória de uma galáxia distante mil anos luz para tentar entender como nasce uma estrela e um planeta. Luís, quando preso, construiu um rudimentar tripé de madeira para observar as estrelas, guardar as constelações na memória, e assim sentir-se em liberdade. George, no telescópio, compara representações gráficas dos corpos celestes e do corpo humano: na origem do universo, o cálcio dos ossos humanos. Apareceu logo depois do big bang. Está nas estrelas e nos homens. Por cima do céu e por baixo da terra. Por baixo do deserto que Teresa, 70 anos, escava com as próprias mãos para se lembrar de Mário. Para continuar sonhando com um telescópio capaz de vasculhar o deserto para ajudá-la a encontrar os ossos dos desaparecidos.

Somos todos, de certa forma, arqueólogos, vivemos no passado, em diferentes passados, e sempre em estado de busca – conclui Lautaro.

Na estrutura de composição o muito longe no espaço e no tempo ilumina o muito perto no tempo e no espaço. A montagem alternada de detalhes de corpos celestes vistos nos telescópios e de fragmentos de ossos humanos encontrados no deserto traduz em imagens o que o filme diz quase ao final: “Comparado com a imensidão do cosmos, os problemas dos chilenos poderiam ser considerados insignificantes, mas se os colocamos em cima de uma mesa eles são tão grandes como uma galáxia”. Talvez seja possível definir Nostalgia da luz com as mesmas palavras usadas pelo filme para definir o deserto de Atacama: um lugar privilegiado para explorar o tempo, um portal para o passado. Esse documentário, que documenta essencialmente no modo de documentar, de organizar os registros de diferentes fragmentos da realidade, traz à memória um outro filme de Guzmán, A batalha do Chile, que, ao contrário, parece depender quase só do significado das ações filmadas e quase nada de sua estrutura. Retomar na memória a trilogia realizada entre 1974 e 1979 depois de ver de Nostalgia da luz permite escavar a estrutura quase invisível que organiza as imagens do golpe militar que derrubou o governo de Salvador Allende em 11 de novembro de 1973.

Talvez seja possível dizer que assim como Nostalgia da luz é um filme sobre o passado, A batalha do Chile é um filme sobre o futuro.

No deserto, reflexão antes da imagem: “trabalhei por mais de quatro anos e meio para descobrir como fazer um filme sobre o passado astronômico e o passado histórico, em conversas com astrônomos e arqueólogos e em conversas comigo mesmo”. Na cidade, imagem antes da reflexão, o documentário arrastado pelos acontecimentos tentando prever o que ia acontecer em seguida. Patrício se lembra, “de manhã telefonávamos para três ou quatro jornalistas amigos e perguntávamos: o que vai acontecer? Era preciso escolher. Se saíssemos a filmar espontaneamente, em uma semana, em um mês, dois no máximo, teríamos esgotado todo o filme virgem. Anotávamos o que havíamos filmado e o que faltava ou era difícil de filmar… Muito mais tarde, no escuro da sala de montagem, é que começávamos a ver se o material estava bom ou não”.

Talvez seja igualmente possível dizer que em Nostalgia da luz a estrutura de composição previamente estabelecida, se não determinou pelo menos permitiu filmar em liberdade e que em A batalha do Chile as condições de filmagem se não determinaram pelo menos permitiram criar uma estrutura de composição livremente no processo de montagem, em operação semelhante à realizada com o telescópio do deserto. O comentário do astrônomo em Nostalgia da luz como uma metáfora do trabalho de montagem de A batalha do Chile: tudo o que aparece aos olhos é o passado, o presente (a filmagem) não existe, o que chega aos olhos é a memória dele (na mesa de montagem). 

Cinema talvez seja mesmo a memória de um fato, verdade ou imaginação, acontecido em algum lugar do passado, no tempo da filmagem. Na projeção o passado parece presente, ou, se passado, distante só aquele milésimo de segundo que luz da tela tarda para chegar aos olhos do espectador. De qualquer modo, um filme documentário não é uma reprodução de um fato passado e sim uma construção, o presente da memória. Um documentário se refere à realidade sem trair os fatos, mas é uma construção – com algum exagero: uma construção dramática em que a realidade – a imagem de um fragmento dela – é tomada uma metáfora da realidade. Ainda com algum exagero: é a construção de um presente absoluto que só pode ser assim, absoluto, porque é construção e não apenas um registro objetivo de algo ocorrido. Um filme documentário, define Patricio, começa na busca de “sinais dramáticos dispersos na realidade como palavras soltas que flutuam no ar. Encontrar esses sinais permite criar frases, uma sequência. Nasce da observação de um artista que descobre na realidade um pequeno sinal de valor dramático. Encontrado esse sinal, estamos na metade do caminho. Resta organizar a narrativa, selecionar os temas que queremos explorar, e isso toma tempo”.

Em A batalha do Chile, mais perto de uma reportagem, foram quase sete anos para analisar e estruturar o material filmado – entre 20 e 25 horas de imagens: “Levamos oito, nove meses só para chegar à conclusão de que deveriam ser três filmes”. Em Nostalgia da luz, mais perto de um ensaio, a análise e estrutura do material, de certo modo, começou antes da filmagem, definiu-se na reflexão – em quatro anos e meio de conversas comigo mesmo” – para a descobrir como trazer para o presente um passado (o astronômico) e o outro passado (o histórico). Os dois filmes, de fato, são feitos de um tanto de reportagem e um tanto de ensaio. Com os dois filmes acesos na memóriatalvez seja possível imaginar no de agora a memória do presente de A batalha do Chile. A memória tiene fuerza de gravedad. Siempre nos atrae. E só os que têm memória son capaces de vivir en el frágil tiempo presente – diz o comentário final de Nostalgia da luz, que, com a lembrança da descoberta de um buraco negro no centro de nossa galáxia feita nos observatórios de Atacama, conclui: “Cada noche – lentamente, impasible – el centro de la galaxia pasa por encima de Santiago”.

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