Cada caso é um caso

Correspondência

20.10.11

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Meu querido Dapieve:

Em sua terceira carta, você mencionou lacunas de memória e idas a médicos. Mês passado, comprei um livro policial, autor da velha guarda, bela capa. Como vou a meio (meus detratores dirão meio adernado…) em meu próprio livro para a Coleção Negra, da Record, todo novo policial é esquadrinhado, anotado, virado do avesso. Fiz isso, minuciosamente, com o tal livro. Muito bom. Quando fui colocá-lo na estante adequada, lá estava outro, igualzinho. Senti o famoso frio na barriga. Retirei, trêmulo, o volume para dar uma conferida, quase rezando para encontrá-lo imaculado. Estava cheio de notas com minha indecifrável letra e uma longa observação final. Liguei o ar-condicionado do quarto, meu pulmão artificial quando o bicho pega, e um único pensamento piscava como o letreiro vagabundo de uma espelunca que vi, bem mais moço, em Manaus. Só que no Amazonas estava escrito GIRLS no anúncio de néon, mas, dessa vez, lá do fundo da minha mente, vinha uma única palavra aterrorizante:

começou… começou… começou… começou… começou…

Em minha extensa folha corrida, há hematêmese do tipo Dr. Sócrates, aí pelos 30 anos, duas hepatites provavelmente alcoólicas, uma extensa fratura de fêmur, com 13 parafusos e uma placa de platina, do joelho esquerdo até quase a raiz da coxa, e, agora, diabetes – 2. Sobre a fratura, quero ser enfático: sou radicalmente pela prisão e cana duríssima para bêbados no volante. Não sei dirigir e jamais me interessei por carros. Meu avô português me deu a primeira terrina de porcelana com vinho tinto aos 13 anos. Disse uma frase, antes do primeiro gole, profética:

– Isto vai te ajudar muitas vezes, até que um dia não vai dar certo…

Bem na mosca.

No acidente que sofri, estávamos minha mulher e eu, parados no fim de um engarrafamento. Um idiota de 18 anos, meio bêbado, talvez maconhado, entrou a uns 80 por hora na traseira de nosso carro. Meu joelho chocou-se contra o porta-luvas e a pressão quebrou o osso em lascas verticais, ao contrário da comum fratura transversa. Muito depois, soube que o cara havia largado o volante para agredir a namorada. Uma coisa que não consigo esquecer: eu estava estirado na rua, apoiando minha mulher com a cabeça ensanguentada. Um cara tentava ajudar e a consorte gritava:

– Deixa isso pra lá, Beto! Vamos embora daqui! Tem sangue! A gente pode pegar aids!

O casal acabou deixando a gente lá.

Uma mensagem, curta e grossa:

– Beto, espero que você seja um grande corno manso, alvo de piadas do bairro inteiro em que mora, seu covarde babaca!

Rogada essa praga, vamos em frente. Com 65 anos, começaram as solicitações de copiosos exames. Eu faço os de sangue, urina e fezes. Recuso o resto. Dez em cada quinze amigos meus estão fazendo colonoscopia, o xodó do momento. Fico com a impressão de que os médicos querem documentar seus casos mais do que ajudar os pacientes. Você lamentou os amigos perdidos. Desde a morte dos parceiros Maurício Tapajós, Paulo Emílio e Marco Aurélio Braga Nery, comecei a desenhar cruzes no caderno de telefones, ao lado dos nomes daqueles que partiram. Hoje, mais de 12 anos depois, o caderno parece um cemitério. Tirando o campo da neurociência, não vejo meus companheiros de geração se beneficiarem dos “extraordinários progressos da medicina”. Pelo contrário, noto fatos alarmantes: amigos morrem no dia da alta; outros, sofrendo de câncer, respondem a extensos questionários. Entre as perguntas, há mistérios assim: “Come biscoitos com frequência?” “Toma bastante sorvete?”. O que é isso? Tenho 5 netos! Sorvetes e biscoitos deveriam ter, nas embalagens, fotos de pessoas morrendo e uma advertência sobre o mal que fazem, como nos maços de cigarro? Um amigo foi ao médico sentindo dores nas pernas, consulta paga pelo plano de doença desses salafrários. O cientista mexeu o tempo todo no mouse, olhos vidrados no computador. Quando disse: “Bem, bem…” e puxou o receituário, meu amigo sussurrou:

– O sr. não vai olhar pra minha cara nem um instantinho?

Em candente artigo para jovens médicos, o Dr. Dráuzio Varella recordou que laboratório não substitui o exame físico bem-feito. Pergunto: os dois axiomas sagrados de quando me formei em medicina estão mortos? “A clínica é soberana!” e “Cada caso é um caso” resumem brilhantemente a boa medicina.

Como adoro histórias curiosas, uma querida amiga foi ao proctologista. As requisições de exames chegaram perto de uma centena para um problema aparentemente simples. O doctor, com especializações nos States, não aceitava “planos”. Um mês depois, nova avaliação. Outra avalanche de exames pedidos, após o toque e resmungos esotéricos. Nenhum remédio prescrito. A moça voltou com os resultados. Foi tocada, apalpada, auscultada e – tchan! – nova solicitação de exames “de ponta” – aquela que Luzia levou na horta. Aí, minha amiga surpreendeu o phDedo:

– Desculpe, mas não vou fazer nada disso. Chega!

O Mestre:

– E pode-se saber a razão?

– Perfeitamente. Meu cu não é shopping center!

Abração fraterno.

Aldir

* Na imagem da home que ilustra este post: detalhe da foto Leçon d’anatomie (2008), de Estelle Lagarde

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