Sabedoria pedestre

Correspondência

14.11.11

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Grande Guru,

Rascunho esta e-pístola na área de embarque do Aeroporto de Confins. Sei que sua relação com aviões só não é menos próxima e confortável por não ser possível, mas, diferentemente de você, nada me apega ao solo. Inclusive porque tenho medo é de aeroporto, ainda mais de aeroporto brasileiro. A bem da verdade, o de BH apresenta um estado razoável e não parece, como os do Rio, que se está a chegar num mafuá habitado por taxistas piratas, atendentes atiradas, doleiros sorrateiros e demais aproveitadores. As forças da lei, capazes de ocupar até o Alemão e a Rocinha, são incapazes de dar um choque de ordem – ou de vergonha na cara – no Santos Dumont e no Tom Jobim. Tenho vontade ou de falar em italiano com a Patroa, para não ser confundido com um dos nativos, ou de sair pedindo desculpas aos gringos, um a um. Sórri, iscusi, desolê.

Isso, claro, sem falar da esteira. Está certo que mais cedo ou, nos aeroportos brasileiros, mais tarde, a mala aparece em 98,7% dos casos, mas aquela espera é uma das maiores angústias do mundo. A morte tem mil metáforas, eu sei. E tenho certeza de que a esteira de aeroporto ocupa um lugar perto do topo do ranking. Ano passado, voltando de Portugal, as malas começaram a surgir a conta-gotas no Galeão uma hora e meia depois de o voo ter chegado. Ou seja, demorou “apenas” uns 20% do tempo de viagem. Tempos depois, li autoridades justificando atrasos assim porque bagagens procedentes de certos destinos demandam tempo extra para inspeção (e eu achava que eram inspecionadas depois que passageiros aliviados as recuperassem!). As da Terrinha, pois, seriam esquadrinhadas à cata de produtos alimentícios. Naturalmente, era o meu caso. Eu trazia, numa única mala, três queijos da Serra da Estrela, 27 latas de tremoços, cinco lombos de bacalhau fresco, uma rapariga do Alentejo e um embutido enorme e cheio de veias para presentear a autoridade que teve a cara de pau de dar essa explicação.

Bem, meu amigo, eu estava em Confins a voltar do Fórum das Letras de Ouro Preto.

Nossas cidades coloniais me comovem. Ouro Preto, Tiradentes, Paraty… Olinda não entra na lista porque, entre as muitas falhas de meu caráter, está a de não conhecer Pernambuco. A primeira razão para comoção é que, percorrendo-lhes as ruas, não consigo deixar de pensar que algo se perdeu na arquitetura, ao menos temporariamente, e em especial a partir de meados do século XX. Nenhuma arte “evolui” ou “involui” de fato: apenas muda, adequando-se aos meios materiais e às circunstâncias sociais de novos tempos. Na arquitetura, porém, a sabedoria colonial dos pés-direitos altos, dos janelões e dos cômodos arejados foi desalojada por verdadeiros bunkers (não os nossos, amigáveis, blindados por livros), escuros, quentes e, para não deixar incompleta uma analogia, malcheirosos. Um retrocesso, sem sombra de dúvida, sem sombra de espécie alguma. Os modernos prédios brasileiros parecem, quase todos, projetados para uma Suécia de filme de Bergman, na qual é sempre inverno por dentro e por fora.

Não menos importante, a segunda razão para minha comoção nas cidades coloniais é a sua beleza propriamente dita. Em Ouro Preto, meu hotel se projetava de um barranco, num dos morros que cercam a cidade. Tomar café da manhã no século XXI contemplando uma metrópole colonial – a cidade que abriga o mais antigo teatro em funcionamento nas Américas, por exemplo – não tem preço. Vale até se aporrinhar um pouco nos aeroportos. Quando descia a ladeira, então, sempre escutava Mozart na alma. Sobretudo o concerto nº 20 para piano, em ré menor, K 466, com sua perfeita mistura de claro e de escuro. Acho que foi o Barenboim que veio com a história de que essa era a música favorita de Stalin. Ele tinha de ter um lado bom, não tinha?

As cidades coloniais têm ainda um outro tipo de sabedoria, digamos, mais pedestre. Elas exigem o nosso olhar, mas dispensam o nosso olhar apressado, em movimento. Por conta dos calçamentos e/ou das pirambeiras, ficar bestando, a contemplar as fachadas branquinhas, é receita certa para uma fratura exposta. Só se pode andar em segurança pelas ruas de Ouro Preto ou de Paraty se se estiver bêbado ou se se olhar para baixo, o que me parece, também, uma forma respeitosa de (não) encará-las. Ou seja, a única maneira de realmente vê-las é parar, não só no tempo como no espaço.

Abração,

Arthur

P.S.: Agora somos todos Vasco.

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