Uma versão desidratada da vida

Correspondência

01.02.12

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JP, 

Essa do grumo de sangue foi demais. Vai direto pro caderninho. Aliás, que belas epígrafes têm teus livros. Não posso dizer o mesmo dos meus, infelizmente. Eles tiveram dezenas de potenciais epígrafes, algumas delas bem bonitas e importantes no processo de escrita, mas na hora da edição final sempre me dá um treco e eu corto tudo. É como se a epígrafe poluísse o livro ? ou, ao contrário, como se o livro tirasse a potência da epígrafe, cujo destino ideal seria ficar boiando no éter, alheia a tudo, emitindo sinais de alta frequência como um sonar ou um golfinho. Enfim. Quem sabe um dia.

Que sorte a tua, chegar bem na noite do réveillon. Fico aqui tentando adivinhar o que deve ser Macau, mas só consigo entrever essa mistura de reconhecimento e estranheza que a tua carta transmite. “Uma ex-colônia portuguesa na China” ? essa frase sozinha carrega mais coisa dentro de si do que eu sou capaz de processar. Você diz que não tem nada de seu por aí, e isso me faz pensar se existe algo que me pertença do lado de cá.

Eu não saberia dizer. Sei apenas que minha vida aqui tem sido uma versão desidratada da vida que eu levava em São Paulo ? menos amigos, menos programas, menos angústia, menos euforia. Meus trajetos em Chicago se resumem a três ou quatro linhas retas, que percorro com regularidade e teimosia. Sei em que mesas gosto de estudar na biblioteca, qual o meu prato preferido no tailandês da esquina, em que vagão do metrô preciso estar pra sair mais perto da escada rolante; sei qual o melhor sachê (dark magic, bem mais encorpado que o sumatran reserve) para a máquina de expresso do departamento; sei que o diner da rua de cima serve uma torta de creme pecaminosa, e que na frente dele existe um karaokê coreano que, a depender da hora da madrugada e do seu grau de embriaguez, pode ser o lugar mais triste ou mais divertido do universo.

Parece pouco, mas não é. Acho que em São Paulo minha vida andava caminhando mais depressa do que minha cabeça podia acompanhar ? tão depressa, aliás, que a impressão que eu tinha era de que pouca coisa estava acontecendo. Isso faz algum sentido? Eu sou um sujeito lento, reflexivo, preciso de tempo pra olhar pras coisas. Talvez seja por isso que, por mais fantástica que tenha sido a experiência do Amores Expressos, eu não pretendo escrever outro romance sob encomenda. Não é uma questão de prazos ou demandas. É que pra mim o processo de colocar um romance de pé inclui tentar descobrir (normalmente sem sucesso, mas isso não importa) qual foi o impulso que me levou a começar a escrever – e quando essa pergunta está respondida de antemão, parece que fica faltando uma pecinha pra fechar a conta.

O fato, enfim, é que tenho tido a oportunidade de trabalhar com foco e viver com calma. É claro que tudo isso dá origem a algumas, digamos, deformações. Domingo passado fui pela primeira vez ao Lincoln Hall, uma casa de shows bacanuda mais ou menos perto de casa, e essa descoberta me deu uma alegria meio desproporcional: era como se eu tivesse feito um amigo novo ou me apaixonado por alguém. Agora fico olhando no site à procura de algum artista que eu conheça minimamente, só pra poder voltar lá. Vai rolar o Jeff Mangum essa semana, mas tá esgotado, de modo que no momento me divido entre um show de grind metal e uma violinista de R&B. Não, eu não precisava fazer nada disso – mas você sabe como é.

Abraço,

Chico

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