Conexão-Macau

Correspondência

30.01.12

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Chico,

Desculpa pela demora. Entre sair de casa no Rio até o momento em que finalmente abri a porta do meu quarto de hotel, passaram 34 horas. Duas pernas de avião, quatro horas em Dubai, uma barca em Hong Kong, um jantar protocolar, discursos das autoridades, apresentações, o quarto.

Tomei banho e decidi dormir cedo, mas, quando vi os fogos pipocando lá embaixo, ficou claro que não iria conseguir. Menos pelo barulho – foi rápido – e mais pela excitação da cidade desconhecida. Pouco antes da uma da manhã, saí sozinho para caminhar na minha primeira noite em Macau, que era a última do ano novo chinês.

Subindo a avenida de Almeida Ribeiro, lembrei do trecho da sua carta sobre os primeiros encontros com as cidades e como eles ficam marcados na memória. Eu estava construindo essa lembrança, agora sobre Macau.

Também fico eufórico e com os sentidos aguçados. Tudo é o presságio de alguma coisa: uma janela entreaberta, um esbarrão na esquina, a família no restaurante por trás dos aquários iluminados na vitrine. Já escrevi e já escreveram isto antes: é como despir uma mulher pela primeira vez. Você fica meio bobo ao mesmo tempo em que ganha uma atenção amplificada sobre os detalhes daquele corpo, um olhar inaugural que você só vai manter caso se apaixone pelo que está por trás dele.

Imagino que você saiba um pouco de Macau, do Camões em Macau, do Camilo Pessanha em Macau, da arquitetura portuguesa em Macau, das casas de ópio em Macau e dos cassinos em Macau, que hoje giram cinco vezes o dinheiro que circula por Las Vegas. Tentei me preparar quando me convidaram pra esse festival, mas nada me faria esperar pelo que encontrei aqui.

Caminhar pela ex-colônia portuguesa na China de hoje é uma experiência desconcertante e simbólica. Cada esquina diz muito sobre a Europa e a China deste século em perpétua inauguração, sobre a passagem do tempo – e, claro, sobre Portugal, essa senhora austera que nos olha de cima, ainda que estejamos no topo da escada.

Assim que abandono os corredores de mármore do meu hotel-cassino, onde um chinês me saúda com “bon soir”, encontro sobrados e igrejinhas coloniais com lanternas vermelhas, pedras portuguesas no chão e, ao fim da rua cortada por becos esfumaçados e pensões obscuras, as torres dos cassinos gigantescos flutuando como espaçonaves – Wynn, MGM, Galaxy, Sands, a maioria construídos depois que os portugueses foram embora daqui em 1999. O mais iluminado deles, e talvez um dos prédios mais espetacularmente horrorosos já concebidos pelo ser humano, é o Grand Lisboa, uma flor de lótus de 300 metros de altura com um globo de luzes cinéticas de LED do tamanho de um ginásio na base da estrutura. Se do lado de fora a claridade faz você pensar que ali nunca anoitece, dentro deles o tempo não passa.

Depois de dobrar esquinas a esmo pela cidade inédita, me perder em salas de jogo literalmente do tamanho de quarteirões e deixar 40 dólares no ímpar-preto para depois ganhar 80 no vermelho-13, encontro alguns amigos no topo de uma das torres, de onde se tem a dimensão aérea dos monumentos verticais de dinheiro e insensatez. Ainda iremos a outra boate e a um terceiro subsolo com lasers fatiando nuvens de fumaça e imprimindo pontos coloridos nas pernas descobertas e muito brancas das chinesas. Ali, um adolescente de gravata, líder de um grupo que ocupa uma das mesas no mezanino, começa a pagar bebidas para nós. Depois da quinta, resolvo retribuir comprando uma rodada para eles. O homem fica ofendidíssimo e, como não fala uma palavra de inglês além de “happy!”, manda que uma das suas acompanhantes me diga para, jamais, em hipótese alguma, fazer isso de novo. Nunca mais.

Porque ele é o dono de uma mesa. E daí que ele tem uma mesa, pergunto, e ela me olha como se eu fosse louco.

Ainda vou ficar algum tempo celebrando o meu primeiro encontro com a máfia macaense à base de gim-tônica antes de sair sem me despedir de ninguém e me perder por horas nas entranhas eletrificadas da cidade que, muito a contragosto, amanhece em seus mercados, peixarias, escolas e janelas que se abrem. O asfalto molhado, as gaiolas, os aquários, o porto, os barcos, os letreiros – é a China, eu me lembro de pensar, eu estou na China, caminhando sozinho pela China, longe de tudo o que conheço e que me conhece. Onde nada tenho de meu.

Putalamerda, eu preciso dormir, Chico. Lembra daquela primeira noite nossa em Praga? Essa foi daquelas.

Abração,

JP

Ps.: Acho que a epígrafe do meu romance novo será esta aqui: “E eu, que tinha saudades de quanto ia deixando, até de Barcelona, onde estive cinco dias, até de Colombo onde estive duas horas. Porque a gente é bem um grumo de sangue que por toda a parte se vai desfazendo e vai ficando”.
Camilo Pessanha, Macau, em carta de 30 de abril de 1895

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