Clint e as armadilhas da história

No cinema

02.02.12

 

“Toda história é história contemporânea”, escreveu o pensador italiano Benedetto Croce, querendo dizer que sempre enxergamos o passado com os olhos do presente.

Essa ideia me voltou à lembrança ao ver J. Edgar, o novo filme de Clint Eastwood. Em sua leitura particular da trajetória do controvertido criador e diretor do FBI, o cineasta e seu roteirista, Dustin Lance Black, colocam em pauta uma série de temas candentes de nosso tempo: a “guerra contra o terror”, a invasão da privacidade com fins políticos, as relações de mão dupla entre o poder e os meios de comunicação de massa. É uma obra atual como poucas, em suma.

Leonardo DiCaprio em cena de J. Edgar, novo filme de Clint Eastwood

Reações contraditórias

O filme tem suscitado reações contraditórias, sobretudo por causa da natureza polêmica do retratado. Em muitos casos, esperava-se equivocadamente que o filme desse um veredito sobre Hoover e seu papel na história. Há situações curiosas: na Folha de S. Paulo, um dia desses um colunista condenou o filme por “demonizar” o chefão do FBI; no dia seguinte, no mesmo caderno do jornal, outro colunista criticou Eastwood pelo pecado oposto, o de aliviar a barra de Hoover.

Claro que, ao abraçar esse projeto, o cineasta estava consciente do vespeiro em que iria mexer. Até então, os personagens reais retratados em suas obras eram, no balanço das contradições, figuras altamente positivas: o músico Charlie Parker, o cineasta John Huston, o líder político Nelson Mandela. Com Hoover, evidentemente, a história era outra.

É muito primário acusar o filme de não corresponder à “verdade histórica”. Como sabe qualquer estudante de história ou de jornalismo, não existe “a” verdade histórica, mas versões dela, e o cinema americano lida com essa equação pelo menos desde Cidadão Kane (1941). Ficou famosa a frase de um personagem de O homem que matou o facínora (1962), de John Ford: “Quando a lenda se torna fato, imprima-se a lenda”. Veja o célebre diálogo:


E o próprio Eastwood lidou frontalmente com o tema da construção de mitos em pelo menos dois filmes: Os imperdoáveis e A conquista da honra.

Essa questão é debatida no interior mesmo de J. Edgar. O fio condutor da narrativa é o relato de Hoover (Leonardo DiCaprio) de sua própria trajetória, ditado a um funcionário novato do FBI. Ele diz que quer desfazer equívocos difundidos nas escolas e nos livros e estabelecer a verdade sobre o seu papel. Mas em vários momentos essa sua versão é questionada, seja no Congresso, seja privadamente por seu próprio amigo e amante Clyde Tolson (Armie Hammer). Há um saudável e constante solapamento da confiabilidade dos relatos.

Vou passar ao largo de outras críticas pontuais que têm sido feitas ao filme – o suposto grotesco da maquiagem de envelhecimento (concordo), o suposto tratamento caricatural dado ao romance homoerótico do protagonista (discordo) – e me deter em aspectos que me parecem mais fecundos.

Cinema e imaginário coletivo

Por exemplo: a presença do cinema, que perpassa toda a narrativa. Melhor dizendo: a imbricação entre o cinema e a vida cotidiana dos EUA; o papel dos filmes na moldagem do imaginário coletivo americano. A sequência em que a plateia vaia o discurso moralizador de Hoover num cinejornal e em seguida vibra com a truculência do “inimigo público” James Cagney valeria, por si só, o ingresso.

Há ainda a engenhosidade da estrutura narrativa e das soluções de montagem. Hoover e Tolson entram velhos num elevador e saem jovens, trinta anos antes. O trânsito entre o público e o privado, a grande história e o drama pessoal, quase sempre é feito com sutileza e ironia. Hoover telefona a Bob Kennedy para avisá-lo laconicamente da morte do irmão. Corta para a bandeira norte-americana no alto de um mastro. Por um segundo, imaginamos os funerais do presidente, mas a câmera desce, o plano se amplia e estamos numa corrida de cavalos.

Declínio e ironia

Duas cenas quase idênticas, mas sutilmente distintas, pontuam sem palavras o declínio do poder do protagonista. Na primeira, ele sai à sacada de seu escritório em Washington para ver o desfile de posse de um presidente. Ele está em seu apogeu e acena com a mão, não sabemos se para a multidão em delírio ou para o novo presidente.

Na segunda, no desfile de posse de Nixon, ele assoma de novo à sacada, mas não acena para ninguém, só olha com melancolia, ignorado pelo presidente e pela multidão. Seu tempo tinha passado.

A ironia de Clint Eastwood com as pompas patrióticas já tinha aparecido numa cena muito semelhante (do ponto de vista plástico, não dramático), a do terrível final de Sobre meninos e lobos.

Se tenho um reparo menor a fazer, ele diz respeito à música. Mais do que a duvidosa maquiagem, o que me incomodou foi a trilha melosa, enfática e dispensável (aparentemente composta pelo próprio diretor) associada ao casal Hoover/Tolson, em contraste com a delicadeza enxuta das Variações Goldberg, de Bach, que acompanha as cenas do protagonista com a mãe (a sempre admirável Judi Dench).

Enfim, picuinhas. O importante é que um dos últimos representantes do velho e bom cinema clássico americano, robusto e viril, continua em forma. Saúde e vida longa a Clint Eastwood.

Para quem quer um gostinho da “história real”, aqui vai a cobertura da morte de Hoover pela TV americana, em 1972. (O discurso de Nixon é repetido ipsis litteris em J. Edgar.)

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