Sergio Leone: Era uma vez o cinema

No cinema

12.12.14

Está começando a temporada mais terrível para os cinéfilos. Em meio às inevitáveis listas de melhores do ano e reprises televisivas das mais chochas ou piegas comédias natalinas, o circuito exibidor é invadido por ruidosos blockbusters cuja quantidade de ideias originais é inversamente proporcional à de decibéis.

Neste cenário inóspito, é reconfortante saber que em Belo Horizonte, no Cine Humberto Mauro, segue por mais uma semana a retrospectiva dedicada a Sergio Leone, que inclui desde seus primeiros filmes – as produções históricas Os últimos dias de Pompeia (1959) e O Colosso de Rodes (1961) – até o monumental épico Era uma vez na América (1984), última obra de uma filmografia luminosa.

Do circo à ópera

Em Leone reencontramos a grandeza de um cinema que prescinde de efeitos especiais mirabolantes para gerar comoção e diversão. Um cinema que une as várias pontas dessa arte ao mesmo tempo popular e sofisticada, em que andam juntas a alegria do circo e a solenidade da ópera.

Espaço e tempo, que constituem a matéria básica do cinema, são manuseados à perfeição por Sergio Leone. Um controle absoluto do primeiro, passando vertiginosamente dos planos muito abertos aos supercloses; uma manipulação sagaz do segundo, contraindo-o ou dilatando-o de acordo com o interesse dramático.

Clássica cena de Era uma vez no Oeste.

Um exemplo cabal dessa grande arte está na sequência de abertura do clássico Era uma vez no Oeste (1968), em que os enquadramentos se sucedem com uma desenvoltura e uma expressividade visual de história em quadrinhos, mas com um andamento operístico, que entretanto não exclui o humor. Entre o horizonte desértico sem fim e os olhos semicerrados de Charles Bronson, é todo um mundo que se configura e se conflagra, sob as notas musicais mínimas do normalmente exuberante Ennio Morricone.

Ao contrário dos filmes banais, em que tudo se resolve e explica pelo diálogo, aqui as palavras são tão escassas e precisas que, quando surgem, têm a contundência de golpes fatais. A tensão e a ironia vêm juntas. Um dos três pistoleiros que esperam Charles Bronson para atraiçoá-lo na estação de trens diz, rindo: “Parece que trouxemos um cavalo a menos”. Impassível, Bronson responde: “Não. Trouxeram dois a mais”. Lenta até então, a ação se precipita, como que para concretizar aquela breve enunciação. Se isso não é cinema em estado puro, não sei o que é. Confira a cena: 

Humor mediterrâneo

Ainda que geralmente eclipsado pela grandiosidade épica de seus filmes, um humor caloroso, maroto, mediterrâneo, permeou toda a obra de Leone. E também a vida, claro. É conhecido o seu ambíguo elogio a Clint Eastwood, astro de sua célebre “trilogia dos dólares” (Por um punhado de dólaresPor uns dólares a mais Três homens em conflito): “Gosto de Clint porque ele só tem duas expressões: com chapéu e sem chapéu”. Essa impassibilidade – análoga à de Charles Bronson em Era uma vez no oeste – era exatamente o que o cineasta precisava para caracterizar seus rudes personagens.

Outra tirada saborosa de Leone me foi relatada por Anselmo Duarte numa entrevista. Tomo a liberdade de compartilhá-la aqui.

Em 1971, o ator e diretor brasileiro fez parte do júri do festival de Cannes. A cada manhã, os jurados discutiam os filmes exibidos no dia anterior. Para agilizar o trabalho, primeiro eliminavam, por voto secreto, os títulos que não mereciam consideração para os prêmios principais. Votava-se “sim” ou “não” para que o filme em questão seguisse na disputa. O brasileiro concorrente era Pindorama, de Arnaldo Jabor. Anselmo não gostava do filme e era desafeto do pessoal do Cinema Novo, mas, “como brasileiro”, achou que tinha de defendê-lo. A presidente do júri, Michèle Morgan, lia um a um os votos sobre Pindorama: “Não”, “não”, “não”, “não”, até que surgiu um “sim”. Nesse momento Leone, que também estava no júri, deu um tapinha nas costas de Anselmo e disse, com um sorriso malandro: “Patrióooota!”

A historieta diz muito sobre Sergio Leone, sobre Anselmo Duarte, sobre Cannes – e talvez também sobre o filme de Jabor. Em tempo: o vencedor do festival, naquele ano, foi O mensageiro, de Joseph Losey.

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