A primeira coisa que vem à mente quando se pensa em Manoel de Oliveira é sua quase inverossímil longevidade: 104 anos. Para cúmulo, ele segue filmando. E a fase outonal de sua carreira é a mais produtiva: nas últimas duas décadas ele realizou em média um filme por ano.
Mas não se trata aqui de exaltar números, à maneira de um livro Guinness. Estamos falando de arte. E Manoel de Oliveira é um grande artista em seu apogeu: O estranho caso de Angélica (2010) é a prova disso.
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Penúltimo longa-metragem do cineasta, que depois dele já dirigiu O Gebo e a sombra e dois segmentos de filmes coletivos, O estranho caso, que entra agora em cartaz no Brasil, põe em cena um fotógrafo, Isaac (Ricardo Trêpa, neto do diretor), da cidadezinha de Peso da Régua, chamado à propriedade de uma família abastada para fotografar a jovem Angélica (Pilar López de Ayala), morta no dia do próprio casamento.
O prosaico e o sonho
A par da estranheza da missão, o fato de Isaac ter sido chamado no meio da noite e de enfrentar um tenebroso temporal para chegar à quinta onde jaz a defunta recente sugere a travessia para uma outra dimensão de realidade, conforme uma figura de linguagem muito frequente no cinema fantástico.
Mas o encanto do filme de Manoel de Oliveira consiste em manter um pé ancorado no realismo prosaico e cotidiano, ao mesmo tempo em que o sonho e a fantasia invadem a vida do protagonista. O primeiro signo de perturbação da ordem racional, diurna, emerge quando o fotógrafo enquadra a donzela morta e esta lhe sorri (ou assim lhe parece) através do visor da câmera. É o início de uma obsessão que fará Isaac sonhar com Angélica viva e misturar esses sonhos com a realidade da vigília.
Nas fotos que ele revela na própria pensão onde mora, e que põe para secar no varal do quarto, a moça revive quando tocada pelo olhar de Isaac. É o desejo do fotógrafo, ou antes seu afeto, que confere vida à imagem estática.
Há uma desconcertante mistura de tempos no filme. Nas refeições à mesa da pensão (de que participa uma personagem brasileira vivida por Ana Maria Magalhães), discutem-se problemas do mundo atual, mas os trabalhadores do campo que Isaac fotografa do outro lado do rio Douro, com suas cantigas de lida, parecem saídos de outra época, e uma atmosfera de anacronismo impregna tudo o que diz respeito a Angélica e sua relação com o fotógrafo.
Angélica, Laura, Rebecca
O próprio processo fotográfico artesanal levado a cabo por Isaac, bem como os efeitos óticos que remontam à infância do cinema (falou-se muito em Méliès, com razão), infunde um sabor de passado que condiz com o gesto essencial do protagonista, que é o de preservar da extinção e do esquecimento aquilo que vê: Angélica, os trabalhadores, os campos. Um trabalho de memória, sem dúvida, mas também de magia ou demiurgia: ressuscitar o que já morreu, criar vida a partir da matéria inerte.
A figura inspiradora e inquietante de Angélica, ao mesmo tempo ausente e presente, remete a outras personagens análogas do cinema, como a Laura de Preminger e a Rebecca de Hitchcock, que também presidem o drama a partir de seus retratos.
Imagem, memória, amor e poesia se confundem no cinema de Manoel de Oliveira, são quase termos intercambiáveis. Mas isso não se dá de modo adocicado, sentimental ou autoindulgente, mas, ao contrário, sob a forma de atrito e estranhamento.
Anacronismo, recurso poético
O anacronismo deliberado é um recurso poético constante na obra do cineasta. Sem querer estender demais a análise, basta lembrar, por exemplo, de A carta (1999), sua transposição para os dias de hoje do romance seiscentista A princesa de Clèves, de Madame de La Fayette, no qual a jovem esposa de um fidalgo (Chiara Mastroianni) é cortejada por um roqueiro (Pedro Abrunhosa). Ou então deVale Abraão (1993), a versão portuguesa e contemporânea de Augustina Bessa-Luís para Madame Bovary.
Talvez as particularidades históricas de Portugal favoreçam esse entrechoque de tempos e culturas, tal como demonstrado sobejamente em Viagem ao princípio do mundo (1997), mas o fato é que Manoel de Oliveira se esforça para manter vivo o passado nas entranhas do presente, de tal modo que o tempo de suas narrativas parece sempre um tanto indefinido, desfocado, artificial no melhor sentido da palavra (obra de artífice).
Mundo criado, infenso à representação mimética do real. O cinema como terreno livre para todas as especulações filosóficas e associações poéticas, pátria de todos os sonhos do mundo.