Daniel Schmidt e Gabriel Abrantes

Daniel Schmidt e Gabriel Abrantes

Gol de Portugal

No cinema

20.12.18

O cinema português é hoje um dos mais interessantes do mundo. Alguns diretores lusos, com seus filmes frequentemente estranhos e inclassificáveis, são de uma originalidade desconcertante: Pedro Costa, Miguel Gomes, João Pedro Rodrigues. Mesmo sem atingir o patamar estético dos citados, o divertido Diamantino, de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, se insere nesse contexto de ousadias e estranhezas.

 

 

O Diamantino do título (Carloto Cotta) é um fabuloso futebolista português que, por seu aspecto físico e seu narcisismo, evoca inevitavelmente o craque Cristiano Ronaldo. Mimado e superprotegido pelo pai (Chico Chapas), ele vive seu momento de decisão na final da Copa do Mundo da Rússia, disputada entre Portugal e Suécia (lembremos: é ficção). No minuto final, ele vai bater um pênalti que pode salvar seu país da derrota.

 

Gênio simplório

O problema é que Diamantino não é um jogador comum. A par de sua genialidade em campo, ele é simplório e ingênuo como uma criança, mas ainda não é isso que o distingue da maioria dos craques da atualidade, e sim o fato de ter visões: quando está jogando, o campo é invadido por cachorrinhos peludos de tamanho gigante – e isso é crucial no momento do tal pênalti decisivo.

Se isso já parece bizarro o bastante, ainda há muito mais. Duas irmãs perversas do jogador – gêmeas idênticas que parecem vilãs de um conto de fadas – roubam seu dinheiro e investem em suspeitas contas offshore, e um partido de extrema direita quer cloná-lo e formar um time de onze Diamantinos para “fazer Portugal grande de novo”. No meio de tudo isso, o craque descobre o drama dos refugiados e resolve adotar um órfão africano – que vem a ser na verdade uma agente secreta disfarçada de menino.

Todas essas linhas se cruzam sem cerimônia e sem a menor preocupação com a verossimilhança, elevando ao plano do absurdo uma grande variedade de questões urgentes: a corrupção internacional, o avanço da ultradireita e da xenofobia, a manipulação política do esporte, as identidades de gênero, os usos escusos da engenharia genética etc.

 

Desfaçatez estética

Sátira política, thriller de espionagem, comédia romântica, Diamantino é um pouco disso tudo. Sua desfaçatez acaba por justificar até a estética marcadamente kitsch de algumas passagens (os cãezinhos fofos, a predominância da cor de rosa, os crepúsculos de cartão postal). É como se tudo fosse emanação da mente pueril de Diamantino, que afinal é quem conta a história retrospectivamente.

A liberdade narrativa, a mistura de gêneros, o humor sarcástico e a ausência de autocensura aproximam Diamantino do cinema de Miguel Gomes, o extraordinário diretor de Tabu e As mil e uma noites. O filme ganhou o prêmio da Semana da Crítica em Cannes, entre outros. Os diretores Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt haviam realizado antes o longa-metragem Palácios de Pena (2011), que não vi. Cabe acompanhar com atenção o prosseguimento da carreira da dupla.

 

Destaques do ano

Como esta é a última coluna do ano (folgaremos entre o Natal e o Ano Novo), é inevitável destacar alguns filmes exibidos comercialmente ao longo de 2018. Não é uma lista exaustiva e muito menos objetiva. Alguns lapsos e esquecimentos serão inevitáveis. E a ordem não é de preferência.

Infiltrado na Klan, de Spike Lee

Arábia, de Affonso Uchôa e João Dumans

As boas maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra

Em chamas, de Lee Chang-dong

O outro lado do vento, de Orson Welles

Uma noite de doze anos, de Álvaro Brechner

As herdeiras, de Marcelo Martinessi

Benzinho, de Gustavo Pizzi

O animal cordial, de Gabriela Amaral Almeida

Uma casa à beira-mar, de Robert Guédiguian

O nó do diabo, de Ramon Porto Mota, Jhésus Tribuzi, Ian Abé e Gabriel Martins

O processo, de Maria Augusta Ramos

A câmera de Claire, de Hong Sang-soo

Ex-pajé, de Luiz Bolognesi

Antes que tudo desapareça, de Kiyoshi Kurosawa

Visages Villages, de Agnès Varda e JR

Feliz como Lázaro, de Alice Rohrwacher

O beijo no asfalto, de Murilo Benício

Auto de resistência, de Natasha Neri e Lula Carvalho

A moça do calendário, de Helena Ignez

Por enquanto é isso. Contra todas as perspectivas, que o Natal seja tranquilo e o novo ano seja feliz.

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