O ponto de partida para esta nossa revisão da obra do realizador português João Pedro Rodrigues é o lançamento brasileiro do seu mais recente filme, O ornitólogo, que estreou em agosto último na competição do Festival de Locarno. A descoberta desse filme um tanto biológico e carnal, sacro e aventureiro, nos sugere oferecer esta oportunidade de (re)descobrir em sala de cinema a obra completa de um dos grandes autores contemporâneos.
João Pedro Rodrigues opera a partir de uma ideia inicial de cinema de Portugal, mas que se desenvolve rumo à leveza, não apenas na liberdade de pensar e ser da natureza humana, mas que deseja o mundo, muitas vezes a partir de Lisboa. Vale ressaltar que sua obra tem destaque, como já defendemos acima, no cinema atual como um todo, mas é possível também pensá-la como blocos de enorme interesse numa cinematografia portuguesa nesse momento histórico pós-João Cesar Monteiro (1939-2003) e, em especial, Manoel de Oliveira (1908-2015), que, para o bem e para o mal, exerciam o papel de astros de primeira grandeza nas imagens e ideias filmadas em Portugal.
O programa que organizamos no IMS chega também num momento em que João Pedro tem exatos 50 anos. Sua trajetória, que começou no final dos anos 1980, é marcada por um trânsito constante pelo multiformato, e muito nos agrada poder exibir filmes de diferentes durações, tanto em cópias 35 mm como em digital. Afirmo isso pois se torna cada vez mais difícil a programação de cópias em película, por isso também uma das nossas defesas constantes nesse trabalho de curadoria e difusão do cinema na segunda década dos 2000.
O fluxo de cinco longas-metragens de JPR até agora é marcado pela constância do curta-metragem e do que alguns chamam de “média”, aparentemente sem as preocupações e os abandonos frequentes dos formatos mais curtos (e menos “nobres”), observados na maior parte dos realizadores no mundo. De fato, os filmes de curta duração de João Pedro Rodrigues guardam chaves tão importantes para observar a sua obra como os longas, que inegavelmente fizeram o seu nome a partir de estreias prestigiosas em Veneza, Cannes (Quinzena dos Realizadores, Un Certain Regard) e Locarno.
Como pode ocorrer em primeiros filmes (muitos deles curtas-metragens), seu segundo curta, Parabéns! (1997), traz coordenadas para entender o ponto de vista marcado desse autor. Em Parabéns!, um rapaz recebe no dia de seu aniversário uma amorosa chamada telefônica da namorada, mas logo ele próprio percebe que há um homem na sua cama.
Como geralmente ocorre em lotes de filmes mostrados juntos, conexões tornam-se possíveis, como associar Parabéns! à chamada telefônica de O que arde cura (filme de João Rui Guerra da Mata de 2012, com quem realizou a boa vibe que é o curta China, China). Rui é o parceiro artístico de João Pedro, e é JPR quem atua ao telefone em O que arde cura. Esse telefonema existe não apenas como comunicação de afeto, mas como expressão de um amor bruto por Lisboa, num momento histórico e simbólico do bairro do Chiado.
Sabe-se que O fantasma, o primeiro longa-metragem (2000) de JPR, com base afetiva de Louis Feuillade, teve impacto no cinema português pelo pioneirismo de abordar com franqueza um personagem homossexual. Sérgio vaga por uma Lisboa claramente associada ao lixo. Seria isso fruto de um autor que desbravava território virgem não apenas no seu cinema, mas nas imagens produzidas na sua cidade e no seu país?
Os filmes de João Pedro não parecem encaixar-se tão facilmente no rótulo queer. Essa obra parece ir ainda mais longe, com filmes marcados pelo melodrama, o pop, o fetiche e questões de gênero. Um filme pé na porta, e bruto, que é O fantasma nos levaria a Odete (2005), a observação de uma mulher, caixa de supermercado e filmada com patins de rodinhas nos pés, que passa a crer num tipo de transmigração da alma pelo corpo a partir da morte de um homem e da proximidade com o companheiro do morto. A atmosfera de uma escola literária romântica remixada com o toque inconfundível de um autor moderno ajudou a sedimentar João Pedro como um realizador que já parecia completo, e que viu em Morrer como um homem (2008) uma expansão ainda maior dos seus supertalentos.
Se temos o homem lutando contra seu corpo em Morrer como um homem (“Eu vivi como uma mulher e quero morrer como um homem”), a personagem, envenenada por silicone vazado no organismo, e o filme parecem fugir com gosto das próprias convenções de um cinema normalmente queer, da afirmação fácil de uma identidade. No mesmo tema, veja O corpo de Afonso (2012), um filme sensacional sobre história e a imagem masculina, cujo fato de ter sido feito sob encomenda (Fundação da Cidade de Guimarães) nos diz algumas coisas sobre JPR.
E quando essas observações nos levam a um mercado de animais em Macau (Alvorada vermelha, 2011) ou à crônica fantástica de uma festa popular de rua transformada numa espécie de estonteante zombie movie (Manhã de Santo António, 2012), as imagens de João Pedro Rodrigues ganham a larga expansão confirmada em O ornitólogo, em que pela primeira vez usa tela larga CinemaScope. Esse filme de aventura rio abaixo e floresta adentro mantém sua origem luso-ibérica em cada quadro, e enriquece essa filmografia única, cuja escrita deve ser descoberta sempre.