A casa como grande navio

Em cartaz

20.09.16

Visita ou Memórias e confissões, filme autobiográfico sobre a vida e a casa do cineasta português Manoel de Oliveira (1908-2015), estreia no cinema do Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro nesta quinta, 22/9, e fica em cartaz até o dia 6/10. Confira as informações completas sobre as sessões no site do IMS.

Realizado por Manoel de Oliveira em 1981 e mantido em segredo até sua morte em 2015, conforme vontade expressada pelo diretor, Visita ou memórias e confissões (1982) é uma obra-testamento precoce e um tanto peculiar. O título duplo e alternativo já nos permite pressentir um de seus traços mais marcantes (e desconcertantes): trata-se de um filme de estatuto ambíguo, quase esquizofrênico, que oscila entre ficção ensaística sobre uma visita a uma morada e documentário-diário em primeira pessoa sobre a vida do realizador, passada em sua maior parte nesta mesma morada. Assim, a casa aparece como objeto central, personagem do filme e seu locus solus, pois se trata igualmente de um testamento para ela, uma despedida por meio da celebração de sua beleza e riqueza “semântica”. Deste modo Oliveira fala de si sem falar apenas de si, em conformidade com o pudor manifestado na apresentação: “talvez não devesse fazer um filme assim, mas está feito”.

A visita é construída por meio de um diálogo em off, concebido por Agustina Bessa-Luís, escritora e roteirista de predileção de Oliveira, e interpretado por dois atores que fazem parte de sua trupe: Teresa Madruga e Diogo Dória (que podem ser vistos, aliás, no magnífico Francisca, realizado no mesmo ano). Estabelece-se assim o caráter eminentemente ficcional da primeira faceta do filme, que tem início com a abertura espontânea dos portões externos da casa para a entrada dos visitantes espectrais, olhares sem corpo que vêm ao encontro dos moradores. Adentrando o espaço, ambos divagam em considerações filosóficas sobre a habitação e as plantas que a circundam, estabelecendo uma clara conexão entre aquele espaço domiciliar e a Natureza, o Cosmos – como denota o magistral zoom in na magnólia no coração da árvore que, no jardim frontal, “cruza sinais com as estrelas e o resto do mundo”, segundo o personagem de Dória.

O caráter fantasmático dos visitantes determina a visitação como uma experiência essencialmente transcendente, indissociável da natureza testamentária do filme. Imbuídos do princípio da incerteza, parecem tentar resgatar a memória vacilante de uma dubitável passagem anterior. Teria sido um devaneio, uma imaginação? Estariam simplesmente na casa errada? Essa dupla de olhares externos cumprem o papel de nos conduzir, indiretamente, à descoberta da vida de um grande homem, um espírito ilustre que viveu entre nós. E tal como em Cidadão Kane (1941) a entrada na mansão se dá na ausência do notável morador, e é movida pelo desejo de encontrá-lo e conhecê-lo melhor. No filme de Welles a inspeção post-mortem não é capaz de decifrar o essencial do personagem, que permanece fugidio; mas em Memórias e confissões ela “abre” uma outra dimensão, na qual Manoel de Oliveira se faz novamente presente no espaço da casa para narrar e comentar sua vida, com a eventual contribuição de filmes e fotos familiares. O não encontro entre os visitantes e o cineasta e suas recordações reforça a perspectiva sobrenatural do filme, o aspecto de narrativa de além-túmulo, aventura metafísica a partir de um passeio em uma casa desertada pelos habitantes, uma morada fantasma.

E Oliveira parece estimar particularmente a dimensão mística do lar amado que se viu obrigado a deixar, pois faz questão de afirmar que “um certo mistério” ronda a moradia. Vemos um cinzeiro e um porta-retratos se moverem diante de nossos olhos, e alguns comentários dos visitantes corroboram essa representação animista dos objetos: “este sofá não estava aqui”, diz Madruga a certa altura, conferindo ao filme uma ambiência próxima de algumas obras de Raoul Ruiz, em que o espaço parece ganhar vida própria e convidar os homens a alucinações e viagens fora do tempo. Os ruídos constantemente ouvidos aqui e ali, sugerindo a presença elusiva de Oliveira, ou de outros seres, nos demais cômodos, reforçam a percepção de que o filme arquiteta uma experiência espiritual em dois planos paralelos. O que as divagações de Oliveira sobre a morte, o espírito e o Absoluto só reiteram.

Visto de forma menos poética, o filme é uma grande obra autorreflexiva, cujos créditos lidos em off por Oliveira no início fazem pensar em Jean-Luc Godard na abertura de O desprezo (1963) e atestam, se necessário, seu status de grande cineasta moderno. Suas “memórias” são, portanto, não apenas pessoais como artísticas: elas nos permitem apreciar sua paixão pelo cinema e sua concepção de sua arte. E nada evidencia isso melhor do que os pontos de encontro entre Visita ou memórias e confissões e o restante da obra de Oliveira. Próximo do formato de ensaio-biográfico-teatral de O dia do desespero (1992), dedicado a Camilo Castelo Branco e passado na casa do escritor,  forma com Viagem ao princípio do mundo (1997) e Porto da minha infância (2001) uma espécie de trilogia autobiográfica enviesada. O único momento de reconstituição dramática, a prisão do cineasta pela PIDE (polícia política de Salazar), evoca por sua vez passagens do grandioso Amor de perdição (1978). Se Oliveira foi plenamente um homem de cinema, é porque sua vida é indissociável de sua arte, e sua memória de seus filmes. Como diz a certa altura, “a ficção é a verdadeira realidade do cinema”, é por ela “que melhor se poderá aferir a realidade, ou uma realidade concreta.”

E as palavras finais do filme atestam essa impossibilidade de dissociar o homem terreno do artista, sua vida e morte biológica de sua visão poética e filosófica da existência: “Lembro-me da minha infinitesimal presença no tempo e no espaço. E… sumo-me.” Admiravelmente idealizado e construído como uma carta lida do além, Visita ou memórias e confissões é, portanto, um filme único em gênero e conformação, uma narrativa cujo sentido só poderia se desvelar plenamente uma vez tendo sido “realizado” o pré-requisito do desaparecimento físico do autor. A rede de metáforas elaborada ao longo do filme – a casa como um grande navio atravessando o oceano dos anos, e o cair progressivo do dia, com a chegada do crepúsculo e, em seguida, da noite, como o apagar da vida – coroam o grande projeto de oferecer uma representação cinematográfica de seu próprio desvanecer. A tela branca, já sem imagens, ao som do projetor que embalou até ali as memórias, fecha então de forma fenomenal este testamento em filme. Difícil imaginar uma forma mais bela de se despedir da vida, de uma vida de cinema pelo cinema.

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