Os realizadores JR e Agnès Varda

Os realizadores JR e Agnès Varda

Irmã das coisas fugidias

No cinema

26.01.18

O cinema, entre muitas outras coisas, é uma arte do encontro. A prova definitiva disso, se é que faltava uma, é o adorável documentário Visages villages, de Agnès Varda e JR, em cartaz no IMS Paulista e no IMS Rio. Não só pela parceria improvável de seus realizadores e protagonistas – uma cineasta de quase 90 anos e um fotógrafo e muralista de 34 –, mas também por seu tema e seu método de construção.

Para dizer resumidamente, os dois saem pelo interior da França na van-estúdio do artista à procura de rostos (visages) e vilarejos (villages) para fotografar. Ampliadas em grande escala, as imagens de pessoas, invariavelmente em preto e branco, são coladas sobre superfícies diversas, da fachada de uma casa à lateral de um celeiro, de um reservatório de água a muros de uma fábrica. Nesse processo, tudo acaba por se transformar, numa ressignificação permanente: as paisagens, os indivíduos e as relações entre ambos.

Permanência e transformação

Conta-se que, durante a filmagem de um western de John Ford, um dia amanheceu com chuva. O diretor de fotografia, desolado, perguntou ao cineasta o que fazer. “Vamos filmar a paisagem mais expressiva que existe”, respondeu o mestre: “o rosto humano”.

Visages villages é, de certo modo, a demonstração prática dessa ideia e ao mesmo tempo o seu desdobramento em mão dupla, uma vez que aqui não só o rosto é uma paisagem, mas esta também é um rosto – que se modifica pela presença e pela ação daqueles que nela vivem.

Uma atenção especial é dada pelos diretores aos ofícios das pessoas que encontram pelo caminho. Alguns praticamente desaparecidos – o dos mineiros de carvão, por exemplo –, outros em vias de extinção ou de transformação radical, como o dos pastores de cabras ou o dos agricultores.

Também o mundo natural se transforma pela ação do homem. Um exemplo são as cabras, cujos chifres os criadores “modernos” agora cortam ou queimam já na mais tenra idade, para evitar ferimentos entre elas e a consequente perda de rentabilidade. Só uns poucos tradicionalistas resistem, mantendo a integridade córnea dos bichos. Pessoalmente fascinada pelas cabras, Agnès insta JR a fotografá-las com seus grandes chifres e expor suas caras pelas paredes. É quase um manifesto – e uma reafirmação do cinema como registro daquilo que passa, daquilo que um dia vai acabar.

Juventude reencontrada

Como quem não quer nada, a diretora insere neste insólito road movie imagens e reminiscências de sua trajetória pessoal e artística, revisitando lugares e personagens que lhe são caros. Esse resgate da memória afetiva se dá sem nostalgia (e muito menos pieguice), uma vez que é temperado pela postura autoderrisória da cineasta e por sua relação ao mesmo tempo carinhosa e jocosa com o jovem JR, feita de brincadeiras e provocações mútuas.

No centro do jogo entre o passado e o presente, entre o que passa e o que permanece, está uma incontornável figura presente/ausente: Jean-Luc Godard, o flamejante líder da Nouvelle Vague, movimento do qual Agnès foi a única representante feminina. Godard é evocado desde o início, quando a diretora diz que o hábito de JR de se esconder por trás de óculos escuros lembra o de seu velho amigo cineasta. A bem da verdade, toda a figura do fotógrafo – os óculos, o chapéu preto de feltro, a postura cool – remete ao jovem Godard.

Agnès e JR chegam a reencenar parodicamente no Louvre a famosa sequência do godardiano Band à parte (1964), em que os amigos correm esfuziantes pelas galerias do museu, cena citada também em Os sonhadores (2003), de Bertolucci. Mais importante: eles vão à cidadezinha suíça onde vive hoje o octogenário diretor para visitá-lo. O impactante desfecho dessa tentativa de encontro, que não vou antecipar aqui, diz muito sobre o temperamento antagônico desses dois velhos amigos distanciados, Agnès e Jean-Luc.

Se Godard, o misantropo, é a inteligência fria e implacável, não isenta de arrogância, Varda é quase o oposto: uma sensibilidade aberta ao outro, ao acaso, ao erro, que valoriza mais as relações de afeto do que uma suposta integridade da “obra”. Todo o seu cinema é poroso, permeável à vida, com seus ímpetos e imperfeições. Quem viu seu belo As cento e uma noites (1995) sabe que para ela uma amizade – e seu registro, ainda que apressado e provisório – vale mais do que um enquadramento perfeito ou uma sequência genial.

Cinema que pulsa e respira como a própria vida, efêmera e intensa. “Irmã das coisas fugidias”, chegando aos 90 anos, Agnès Varda pode dizer, como Cecilia Meireles: “Eu canto porque o instante existe. (…) E um dia sei que estarei mudo – mais nada”.

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