Três anúncios para um crime, de Martin McDonagh, é uma improvável mistura de comédia cruel de erros com parábola cristã de culpa e redenção.
A esta altura o enredo, ou ao menos seu ponto de partida, já é amplamente conhecido: numa cidadezinha do Missouri, no sul profundo dos EUA, uma mulher de meia-idade, Mildred Hayes (Frances McDormand), resolve estampar em três oudoors mensagens que cobram da polícia a identificação e punição dos responsáveis pelo estupro e assassinato de sua filha adolescente.
Horizontes possíveis
Diante desse início promissor abriam-se inúmeros caminhos possíveis, e o roteirista e diretor McDonagh parece ter desejado seguir todos eles, de modo alternado ou concomitante.
Primeiro, delineia-se um confronto central, entre Mildred e o chefe de polícia local, Willoughby (Woody Harrelson). Mas a queda de braço dura pouco: logo sabemos que o policial está com um câncer terminal e os dois se tornam praticamente amigos irmanados na apuração do crime.
A partir daí, os temas, as reviravoltas narrativas, as conversões psicológicas e morais, tudo se acumula, nada fica de fora. Quer denúncia da discriminação racial? Tem. Quer sátira da estupidez do americano rural, à maneira dos irmãos Coen? Tem. Quer pedofilia na Igreja católica? Tem. Quer marido que espanca mulher? Tem. Quer relação conflituosa entre pais e filhos adolescentes? Tem. Quer missão secreta militar americana no exterior? Tem. Quer melodrama de família destruída por suicídio do pai? Tem. E tem também, claro, estupro e assassinato de menor.
Material suficiente para uma série, como se vê. Um Twin Peaks sem a parte fantástica, talvez. Mas McDonagh, de algum modo, compactou tudo isso e mais um pouco em menos de duas horas de filme. Talvez por isso tenha levado o prêmio de melhor roteiro em Veneza e no Globo de Ouro. É uma das sete categorias em que concorre ao Oscar. Mas tamanha proeza não se faz sem pagar um preço.
Catarse instantânea
Talvez o preço pago aqui seja a ligeireza (tanto no sentido de velocidade como de falta de espessura) com que as coisas são apresentadas. Em duas frases ficamos sabendo que um determinado policial gosta de torturar negros. É um cretino fundamental, cuja brutalidade só é comparável com sua burrice. Mas basta uma carta dizendo que ele precisa ter menos ódio no coração e… voilà: o sujeito se torna um apóstolo do amor, capaz de sacrifícios extremos por solidariedade e compaixão pelos semelhantes.
Todos os personagens importantes passam por esse processo de conversão, algozes se tornam salvadores, vítimas compreendem e perdoam, de tal maneira que a ironia quanto a uma frase de autoajuda lida num marcador de livro – “o ódio suscita o ódio” – pode ser aplicada ao próprio filme. Há uma espécie de entrega imediata das emoções, uma catarse a cada poucos minutos, bem ao gosto de nossa época de comunicação fugaz: o dentista sádico, o policial racista, o marido espancador, os colegiais intimidadores, todos são punidos sem demora.
Com tudo isso, Três anúncios entretém e diverte até o (excelente) final, mas sua vertente policial (a apuração do crime) fica frouxa e sua dimensão dramática, a meu ver, parece inflada, escorada em clichês gastos e em música melosa. Não há tempo e silêncio suficientes para que nos envolvamos de fato com o drama dos personagens.
Algumas possibilidades dramáticas interessantes, como a virtual oposição de toda a comunidade à cruzada de Mildred, são apresentadas e logo abandonadas, ou subaproveitadas. É preciso encaixar outras coisas, não se pode perder tempo.
Do ponto de vista da construção visual, há uma eficiência standard no estabelecimento dos ambientes e das relações dos indivíduos com eles. As imagens mais fortes, talvez não por acaso, são de dois incêndios. O fogo, presente desde o fato inaugural da história (a garota estuprada foi carbonizada), comparece com sua dupla significação: fogo purificador, fogo do inferno.
A opção multitemática e multifocal da narrativa contrasta, por exemplo, com a de um filme como Corra!, de Jordan Peele, que desenvolve sua premissa até o fim de forma orgânica, sem se dispersar no caminho, conseguindo um impacto mais duradouro. Posso estar enganado, mas Três anúncios oferece uma satisfação tanto mais imediata quanto mais descartável.
Acossado
Acossado (1960) é toda uma outra conversa. Quase seis décadas depois de feito, o primeiro longa-metragem de Jean-Luc Godard, relançado agora nas telas brasileiras em cópia restaurada, mantém intacto seu encanto e frescor.
É um dos três ou quatro filmes que qualquer pessoa civilizada precisa ver pelo menos uma vez na vida. Quando surgiu, na fase heroica da Nouvelle Vague, trazia um sopro de novidade e invenção que influenciou todos os cinemas novos pelo mundo afora. Havia ali, na trôpega trajetória do pequeno marginal Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo), uma transgressão sistemática de regras narrativas e estéticas que engessavam então o cinema: dogmas de continuidade, verossimilhança, progressão dramática, composição do quadro, psicologia dos personagens, invisibilidade da câmera (e consequente ilusão da “quarta parede”) etc.
Ao romper com essas interdições, praticando uma série de procedimentos vistos como “erros” pela indústria e seus acólitos, Godard abriu horizontes sem fim. Esse ímpeto desbravador, essa alegria do desregramento, insufla toda a primeira fase da sua cinematografia, pelo menos até Week-end (1967). Depois ele partiria para outras buscas e experimentos, não menos interessantes, mas talvez menos encantadores.
Um dado curioso, bastante conhecido, é que o roteiro original de Acossado foi escrito por François Truffaut. Na época, os dois principais expoentes da Nouvelle Vague ainda eram parceiros e amigos. Depois, foram se distanciando – na vida e no cinema. Truffaut, mais apegado à narrativa tradicional, chegaria a dizer que, nos primeiros tempos, ele e seus companheiros de movimento infringiam a decupagem clássica porque não a dominavam, eram incompetentes.
Godard, por sua vez, mergulhou cada vez mais no risco, na “contribuição milionária de todos os erros”, fazendo um cinema difícil, exigente, eventualmente árido, sem concessões. Ambos são grandes, mas para a história do cinema Godard é mais imprescindível.