Robert Guédiguian

AFP/Archives

Robert Guédiguian

Robert Guédiguian

Bárbaros por todo lado

No cinema

20.07.18

Posta em relevo na Copa do Mundo, em especial na campeã França, a questão dos imigrantes – legais ou clandestinos, recentes ou antigos – está no centro e nas bordas de três novos filmes: Uma casa à beira-mar, de Robert Guédiguian, O orgulho, de Yvan Attal, e Primavera em Casablanca, de Nabil Ayouch. Vamos a eles.

Do ponto de vista cinematográfico, o mais forte e bem resolvido dos três me parece ser o de Guédiguian. Temos ali três irmãos (dois homens e uma mulher), já no final da meia-idade, que se reúnem na velha casa da família num vilarejo litorâneo do sul da França, para discutir a partilha do patrimônio familiar, agora que seu velho pai teve um derrame e sobrevive em estado vegetativo.

Apesar da formação comum, são três personalidades bem distintas. Angèle (Ariane Ascaride, mulher do diretor), atriz relativamente famosa, afastou-se da villa e dos parentes depois que sua filha pequena morreu no local, deixando um trauma não superado. Joseph (Jean-Pierre Darroussin) é um professor e ex-militante de esquerda amargurado e sarcástico, com uma jovem namorada que está prestes a abandoná-lo. Por fim, Armand (Gérard Meylan) é o único que restou junto ao pai e que tenta levar adiante seu modesto projeto de vida: um restaurante que serve comida boa e barata “para todo mundo”.

 

Balanço de geração

Com a segurança e a leveza que só os grandes artistas conseguem conciliar, Guédiguian faz desse reencontro não apenas um ajuste de contas familiar, mas também um inventário de geração, um balanço de sonhos e esperanças que hoje parecem se espatifar contra a dureza do mundo neoliberal globalizado – representado no filme pelos personagens mais jovens, como a namorada de Joseph (Anaïs Demoustier) e o médico e empresário Yvan (Yann Trégouët). “Como ser justo num mundo injusto?”, pergunta um personagem a certa altura, e parece ser essa a inquietação que move o cineasta.

Esse aspecto de reencontro e balanço geracional levou muita gente a lembrar de Nós que nos amávamos tanto, de Ettore Scola, e de As invasões bárbaras, de Denys Arcand. Eu acrescentaria Horas de verão, de Olivier Assayas. Mas Guédiguian tem um toque todo próprio, um estilo aparentemente simples e modesto, que se traduz em seu olhar carinhoso aos detalhes concretos (um triciclo abandonado num canto, peixes que se debatem num puçá no raso da água, um pequeno polvo que se gruda ao pé de uma banhista, o cinzeiro que continua emitindo fumaça depois que o fumante não está mais ali) e aos mínimos gestos dos personagens.

O humanismo de Guédiguian não é abstrato e passivo, do tipo que diz que “o homem precisa ser mais compreensivo”; ao contrário, é um humanismo ativo, consciente dos atritos sociais, culturais e políticos.

A melancolia agridoce, tchekhoviana, desse drama familiar é agitada pela entrada em cena de crianças sobreviventes do naufrágio de um barco de imigrantes ilegais. O evento, de certo modo, põe à prova as ideias e os valores discutidos até ali pelos personagens. “Como ser justo num mundo injusto?” deixa de ser um frase retórica e ganha uma pungente concretude.

Pode-se ver aí uma leitura política do mundo atual: a Europa desiludida e moribunda se revitaliza, para o bem ou para o mal, com a chegada dos forasteiros de pele escura. (Cabe lembrar que a Europa que conhecemos é fruto das ditas invasões bárbaras: francos, saxões, mouros etc. – foram esses “intrusos” que formaram as nações europeias.) Mas há também uma espécie de justiça poética interna ao filme: o mar levou uma criança e trouxe outras no seu lugar. Nada é só uma coisa, não existe mensagem unívoca. O grande e o pequeno, o complexo e o simples se fundem na arte de Robert Guédiguian.

 

O orgulho

Igualmente interessante é o ponto de partida de Yvan Attal em O orgulho. Neïla Salah (Camélia Jordana), jovem filha de argelinos que vive em Créteil, na periferia de Paris, entra em choque com um professor sarcástico e racista (Daniel Auteuil) logo no primeiro dia de aula no curso de direito da Sorbonne. O filme desenvolverá a conflituosa relação entre esses dois personagens tão distintos. Para não cair nas garras do conselho de ética da universidade, o professor se dispõe a preparar a garota rebelde para um torneio interuniversitário de retórica.

O problema, a meu ver, é que o fascinante jogo de contrastes posto em evidência – entre gerações, entre etnias, entre Créteil e Saint-Germain, entre culturas e visões de mundo – acaba sendo amortecido e edulcorado por um enredo melodramático de superação à maneira hollywoodiana, em que as arestas são aparadas em favor de uma mensagem edificante com final feliz. Analogamente, a direção é segura, mas pouco inspirada, e se fia basicamente no carisma e na competência dos atores centrais, que, por si sós, valem o filme.

 

Primavera em Casablanca

No filme de Nabil Ayouch, ao contrário, as arestas continuam agudas; as feridas, abertas. Na Casablanca contemporânea, cidade multiétnica por excelência, cruzam-se várias histórias. Há um franco-judeu (Arieh Worthalter) que dirige o restaurante do pai doente, uma mulher independente e cosmopolita (Maryam Touzani) que quer escapar do machismo do marido e da opressão religiosa reinante, um auxiliar de cozinha (Abdellah Didane) que vive no mundo fantasioso do clássico hollywoodiano Casablanca, um ex-professor (Amine Ennaji) que deixou a profissão quando uma nova lei o obrigou a usar o árabe para ensinar seus alunos berberes das montanhas, um jovem músico (Abdelilah Rachid) que sonha em ser “o Freddy Mercury marroquino” etc.

A narrativa é irregular, a passagem de uma subtrama a outra nem sempre flui naturalmente, mas há muita vitalidade nesses personagens e em suas histórias, bem como uma atenção à variedade geográfica, cultural e linguística que compõe esse ex-protetorado francês, tendo como pano de fundo uma agitação político-religiosa que vai ganhando contornos de guerra civil até explodir em violência no final. O movimento dramático é praticamente oposto ao de O orgulho, ainda que a última imagem também seja de esperança no futuro.

Um último comentário sobre os realizadores desses três filmes tão distintos. Yvann Attal (marido de Charlotte Gainsbourg), que filma em Paris, nasceu em Tel Aviv. Nabil Ayouch, que filme no Marrocos, é parisiense, filho de pai muçulmano marroquino e mãe judia tunisiana. Por fim, Robert Guédiguian, nascido em Marselha, onde permanece até hoje, é filho de mãe alemã e pai armênio. Todos eles, em suma, conhecem na carne e no sangue a experiência do desterro.

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