Venezuelanos em Pacaraima (RR)

Venezuelanos em Pacaraima (RR)

Imaginário da fronteira

Política

29.08.18

1.

Pouco se sabia sobre o cotidiano dos cerca de 13 mil habitantes de Pacaraima, em Roraima, e pouco ainda se sabe para além dos relatos de caos e crise associados à chegada de venezuelanos, que imigram de forma mais frequente há pelo menos três anos, em sua maioria de passagem para outros países da América do Sul. Unidas pela BR-174, a brasileira Pacaraima e a venezuelana Santa Elena de Uiarén são cidades-gêmeas, municípios em diferentes lados da fronteira internacional, mas cujas relações sociais próximas resultam numa série de acordos para facilitar os trânsitos transfronteiriços. A rodovia possibilita trocas sociais e econômicas para venezuelanos e para brasileiros – que precisam ir à Venezuela para abastecer seus carros e viram os lucros do comércio em Pacaraima se multiplicarem com a penúria do país vizinho. Com o aumento da entrada de venezuelanos, em situação de precariedade em seu país, a estrada ganhou conotações de perigo e criminalidade. A estrada virou fronteira.

Muitos dos pacaraimenses tem mais laços com venezuelanos do que com brasileiros do Sul, mas diante de um fenômeno complexo como as migrações, símbolos nacionais são facilmente ativados por seu caráter totalizador, ideal. Ao queimarem um acampamento de venezuelanos e os expulsarem do país cantando o hino nacional, moradores de Pacaraima reafirmam um mito de unidade nacional que continua resistindo mundo afora, mesmo que a realidade dê provas de que o lugar fundamental da política não reside mais na separação moderna entre cidadãos e não cidadãos.  O  imaginário da fronteira é tão forte que, ao ser mobilizado como lugar de ameaça, retira todas as particularidades do contexto de Pacaraima – uma cidade numa reserva indígena, com serviços sociais precários, dependente de energia da Venezuela. A fronteira como linha opaca que separa as duas nacionalidades é de fato produzida nessa mobilização, tão totalizadora que desconsidera imigrantes como sujeitos ao se incendiarem seus objetos pessoais e documentos. A autorização do presidente Michel Temer para que as Forças Armadas exerçam poder de polícia na fronteira só reforça a construção de uma ameaça e a ideia de que ela está sendo contida, sem qualquer melhoria das condições de vida de brasileiros e venezuelanos em Pacaraima.

 

2.

Há aproximadamente mil quilômetros de muros e cercas entre o México e os Estados Unidos, um terço da fronteira. O primeiro trecho, de 22 quilômetros, foi construído no início da década de 1990 entre as cidades-gêmeas de San Diego e Tijuana, mas a maior parte foi erguida nos governos de George W. Bush e Barack Obama, nos anos 2000. Nas áreas onde não há muros, o deserto já é uma barreira à passagem de imigrantes, um “álibi natural”, como chama a pesquisadora americana Roxanne Doty. A fronteira é extremamente militarizada, patrulhada por agentes do Estado e por grupos de civis. Mesmo assim, a cada vez que o presidente Donald Trump afirma que construirá um muro para barrar a entrada de imigrantes pelo México, todos se chocam, como muros já não existissem, como se ali atos cotidianos não reafirmassem a fronteira como o lugar da exclusão pela cidadania, que põe cada um em seu “devido lugar”.

Entre abril e junho deste ano, nos Estados Unidos, pelo menos 2.600 crianças foram separadas de seus pais imigrantes, que passaram a ser denunciados criminalmente por terem cruzado a fronteira sem visto, em medida de Trump. Poucos dias depois que o presidente revogou a separação, ele se reuniu na Casa Branca com parentes de vítimas de crimes cometidos por imigrantes sem documentos nos Estados Unidos, para defender sua política de fronteiras. Trump reforçou mais uma vez a imaginária associação entre imigração irregular e criminalidade, ainda que estudos no país apontem menor índice de crimes cometidos por imigrantes. Ele manteve a retórica espetacularizada da contaminação pela fronteira, da “infestação de criminosos”, disse, que devem ser barrados de um país cujo próprio mito de origem se apoia na imigração.

 

3.

Se a fronteira territorial não dá conta de conter o imigrante indesejado, desloca-se a fronteira. Assim vem fazendo a União Europeia em seus acordos com países como Turquia e Líbia, em que bilhões de euros são doados em troca da devolução de solicitantes de refúgio e de investimento em técnicas de controle e detenção de imigrantes. Enquanto as fronteiras da Europa saem da Europa, muros são construídos dentro dela, como na Hungria. Ou fronteiras naturais são reforçadas como lugar de contenção do impróprio, como o Mar Mediterrâneo, outro “álibi moral”, que há anos contabiliza milhares de mortes em rota do Norte da África para a Europa. Com seu projeto ultranacionalista, o novo governo italiano negou o desembarque de imigrantes em navios já atracados em sua costa nos últimos dois meses, o que foi louvado ontem pelo primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, em encontro com o ministro do Interior da Itália, Matteo Salvini: “O objetivo não é gerir a imigração, mas interrompê-la”, disse Orbán.

No último domingo, 140 imigrantes vindos da Líbia desembarcaram na Sicília, dez dias depois de serem resgatados e ficarem à espera no navio da guarda costeira italiana, no porto de Catânia. Escancara-se a arbitrariedade da fronteira: se aquelas pessoas em estado precário permanecessem no navio, elas não seriam responsabilidade da Itália, da União Europeia, de ninguém. Se pisassem em território italiano, o governo teria que se responsabilizar por elas. A violência dessa arbitrariedade e a força do mito de unidade política que ela evoca também são escancaradas em cercas como a que delimita o enclave espanhol de Ceuta, no Marrocos. Se conseguirem pular a cerca, as pessoas têm a proteção do Estado e podem solicitar refúgio; do outro lado, elas têm outro nome, outra categoria. Imigrantes, no entanto, também resistem às fronteiras, vide os africanos de todo o continente que, no Marrocos, escalam a cerca de Ceuta em grupos de centenas, para que alguns consigam ultrapassá-la. Mídia e governos costumam chamar esse ato de invasão, mas o nome também pode ser estratégia de sobrevivência, agência política, resistência.

 

4.

Pacaraima, San Diego, Sicília, cada local tem sua história de migrações, e cada país, seus mitos nacionais que buscam manter a lealdade desses locais a uma comunidade imaginada, para usar a expressão de Benedict Anderson. Não se trata aqui de comparar casos tão desiguais, mas de pensar como, apesar dessa desigualdade, a fronteira resiste como ideal regulador que demarca onde se pode fazer política, quem pode ou não ser um sujeito político. A retórica da ameaça costuma reforçar esse imaginário, e não é preciso ir longe, vide as manchetes sobre a “invasão” de haitianos no Brasil a partir de 2010 e, nos últimos anos, de venezuelanos. A palavra é acompanhada de números superlativos, muitas vezes sem contexto. Mais de perto, porém, vê-se que a política se faz também pela fronteira, ou apesar dela. Pessoas continuarão imigrando, num mundo em que as motivações do deslocamento são tão plurais que as categorias fixas de imigrantes e refugiados já fazem pouco sentido e costumam ser usadas também para demarcar fronteiras sobre a quem é próprio ou não se deslocar.

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