O diretor Luiz Bolognesi

O diretor Luiz Bolognesi

Corpos fora do lugar

No cinema

27.04.18

Filmes que abolem a fronteira entre o documentário e a ficção se tornaram nos últimos tempos quase um gênero à parte. Dois novos títulos brasileiros exploram esse território ambíguo, abordando, cada um à sua maneira, temas pungentes e atuais: o documentário com aspectos ficcionais Ex-pajé, de Luiz Bolognesi, e a ficção com aspectos documentais Cidade do futuro, de Cláudio Marques e Marília Hughes.

O filme de Bolognesi se concentra, como sugere seu título, no personagem de um antigo pajé da nação Paiter Suruí, Perpera, que deixou de exercer o seu ofício quando um pastor evangélico se instalou na região e convenceu a tribo de que “pajé é coisa do diabo”. Desde então, Perpera se tornou quase um pária, cuja função principal é levantar todos os dias ao amanhecer para abrir e varrer a igreja local, vestido de camisa, gravata e calça que o fazem parecer um espantalho.

 

 

As primeiras imagens que surgem na tela são de tomadas aéreas da aldeia Pater Suruí filmadas por Jorge Bodanzky em 1969, em momentos que antecedem o primeiro contato da tribo com os brancos. O que se narrará subterraneamente, portanto, é a história da transformação daquele povo em meio século de aculturação. É, de certo modo, um réquiem por uma cultura, mas também, paradoxalmente, um testemunho da sua resistência.

Essa dupla natureza se expressa pela própria construção formal do filme, mais do que por qualquer discurso verbal, ainda que alguns diálogos sejam esclarecedores. A par da riqueza da observação, digamos, etnográfica, em que vemos os pater suruí em múltiplas tarefas cotidianas e em sua relação com a mata ao redor, assistimos a um embate mudo entre a “modernidade” branca e as persistentes tradições indígenas.

 

Na soleira da igreja

Há os cultos bilíngues, em que os sermões do pastor são traduzidos na língua da tribo por um intérprete, há os diálogos sobre a mudança de estatuto do pajé, mas há sobretudo uma inteligência cinematográfica em ação. Um exemplo simples e eloquente: o modo como se filma a relação entre Perpera e o espaço da igreja.

Na primeira vez que o ex-pajé cumpre sua tarefa diária, a câmera está dentro da igreja às escuras, que se ilumina à medida que Perpera abre sua porta e suas janelas. Na segunda vez, vemos a mesma cena de fora, como se fosse um contraplano, e o ex-pajé mergulha no retângulo negro, sendo absorvido pela escuridão.

No primeiro culto evangélico apresentado, o foco e a luz concentram-se no altar, no fundo do quadro, enquanto Perpera, sentado junto à entrada, como um porteiro, aparece fora de foco no canto direito do quadro. Praticamente o mesmo plano é repetido uma hora depois, só que agora o foco está no ex-pajé. Na primeira cena, Perpera parece se distrair com insetos que zumbem ao redor das delicadas flores de uma árvore, mas predominam as vozes do culto. Na segunda, o mesmo zum-zum dos insetos submerge o culto, como se a mata engolisse e absorvesse aquele arremedo de civilização branca. Todo o drama do filme, bem como seu sentido político, pode ser resumido nessa condição do ex-pajé na soleira da igreja, no portal entre dois mundos.

A modernidade tecnológica e a tradição cultural indígena estão interligadas a todo momento, às vezes em harmonia, frequentemente em atrito. Uma mulher é picada por uma jararaca. É internada no posto médico, dão-lhe injeção e remédios. Os índios consultam o ex-pajé, para quem a cobra é um espírito mau enviado pelos inimigos da tribo, e seguem seus preceitos. A tecnologia não é sempre inimiga. Madeireiros ameaçam a mata da região. Os índios se armam de espingardas, postam fotos de denúncia no Facebook. Uma menina indígena joga videogame no celular, mas outro curumim, talvez seu irmão ou primo, aprende com Perpera a atirar com arco e flecha enquanto o ouve contar mitos antigos.

Ex-pajé é um filme de uma riqueza inesgotável, cujos pillow shots (aqueles planos fixos de ligação entre uma sequência e outra), geralmente imagens bem abertas da mata, do rio ou da aldeia, filmadas em cinemascope, celebram a grandeza da natureza selvagem e instilam uma sensação de tempo cíclico, alheio aos avanços e tropeços da história. Criam também uma certa atmosfera de solidão e melancolia, análoga à trajetória de seu protagonista.

A tragédia do etnocídio indígena concentrada no destino de um personagem dilacerado entre dois mundos marca toda uma linhagem de filmes, desde Uirá, um índio em busca de Deus (Gustavo Dahl, 1973) até Antes o tempo não acabava (Sergio Andrade e Fábio Baldo, 2016), passando pela obra-prima Serras da Desordem (Andrea Tonacci, 2006). Ex-pajé pode figurar com altivez nessa galeria.

 

Cidade do futuro

Assim como ocorre em Ex-pajé, também no segundo longa-metragem da dupla baiana Marília Hughes e Cláudio Marques, A cidade do futuro, personagens reais encarnam seus próprios papéis. Aqui, uma moça (Milla Suzart) e dois rapazes (Gilmar Araujo e Igor Santos) da cidadezinha baiana de Serra do Ramalho vivem um singular triângulo amoroso inspirado parcialmente em sua própria história. Igor e Gilmar são namorados, mas Gilmar também namorou e engravidou Milla, de modo que o menino que vai nascer tem uma mãe e dois pais. Uma espécie de Jules e Jim contemporâneo, com os papéis de gênero embaralhados.

A atribulada história dos três – que entram em choque com suas famílias, com seus empregadores e com a parcela mais conservadora da população local – é entrelaçada com a própria história da cidade, criada artificialmente nos anos 1970 para abrigar moradores de cinco municípios inundados pela represa de Sobradinho. Um sagaz artifício narrativo é utilizado para introduzir esse tema geral. Gilmar, professor de história no colégio local, exibe filmes de arquivo e leva moradores antigos para contar e discutir o episódio com seus alunos. Milla, professora de teatro e dança na mesma escola, aborda o assunto em suas aulas e laboratórios.

É num ambiente precário e improvisado, portanto, de ruas descalças e casas mal-ajambradas, que se desenrola essa história de relacionamentos problemáticos, esgarçados.

O admirável é os realizadores terem conseguido um equilíbrio entre o frescor da captação de uma história em pleno andamento (vemos, por exemplo, a barriga de Milla crescer semana a semana, por assim dizer) e um visível, embora discreto, apuro de construção visual.

Figuras do deslocamento

A vida do lugarejo respira a cada plano, mas isso não impede a construção de imagens-sínteses poderosas. Numa delas, Igor atropela algum bicho pequeno na estrada de terra. Volta para verificar e encontra um peixe se debatendo na poeira, imagem ao mesmo tempo incongruente e significativa, tradução visual literal da expressão “peixe fora d’água”, que serve para os três protagonistas e, de modo mais geral, para toda a população local, deslocada da beira do São Francisco para o meio do nada.

Em outro plano notável, o mesmo Igor, à procura de emprego, entrega seu currículo numa loja popular de roupas. A imagem fixa, captada a média distância, mostra uma fileira de manequins representando uma família de classe média, quase uma metáfora da estagnação moral que ameaça repelir os três protagonistas como uma anomalia indesejável.

Desequilibrado e irregular como a própria vida, A cidade do futuro se aproveita bem da espontaneidade de expressão de seus não-atores. Igor, em especial, com suas hesitações e seus silêncios inescrutáveis, é uma figura cinematográfica por excelência, comparável, no cinema brasileiro recente, ao também não-ator Dione Ávila de Oliveira, protagonista de Rifle, de Davi Pretto. De várias maneiras, e a partir de procedências diversas, parece surgir no país um novo realismo, afastado da dramaturgia teleglobal, e isso, por si só, é muito animador.

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