Em Ouro Preto, com Elizabeth

serrote

16.11.11

Aqueles que, como este que vos digita, têm o hábito de buscar onde vão os vestígios que a literatura pode deixar no mundo, sabem que peregrinação faz rima paupérrima com decepção. E não poderia ser diferente: o que estar diante da casa de Balzac pode trazer de Balzac?

O que pode nos dar uma placa registrando “aqui viveu…” ou mesmo uma lápide?

Foi esse culto da decepção que me levou a uma caminhada sob sol fortíssimo e ladeiras acima para ver em Ouro Preto a Casa Mariana, último pouso no Brasil de Elizabeth Bishop, que assim batizou a casa que restaurou em homenagem a Marianne Moore. “Fica na saída de Mariana, à direita da Escola de Minas”, me ensinou o gentilíssimo rapaz do hotel, detalhando depois algumas referências precisas para chegar à “casa da Linda”.

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Linda Nemer, a dona da Casa Mariana, foi ao lado do irmão, José Alberto, uma das mais próximas amigas de Bishop. A história dessa amizade e da presença da poeta em Ouro Preto foi exaustivamente contada por Roberto Pompeu de Toledo na piauí, e havia sido repetida na véspera numa sessão do Fórum das Letras dedicada a ela.

Além do fórum, um festival literário que traz a esse tipo de evento plateias mais interessadas no que se fala do que na badalação, acontecia em Ouro Preto um congresso internacional sobre Bishop. A cidade estava, de certa forma, assombrada por ela. O que, pelo menos para mim, é ótimo agouro.

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Nos anos 1990, repórter do Globo, fiz uma matéria sobre Elizabeth – pronto, peguei a intimidade dos mineiros. “Bishopmania”, dava conta o título, tentando entender a volta dessa personagem – e de Lota Macedo Soares – na biografia de Carmen Oliveira (“Flores raras e banalíssimas”), na tradução virtuosa de seus poemas por Paulo Henriques Brito e no lançamento de um imenso volume de correspondência (“Uma arte”). Depois viriam novos livros e a belíssima peça de Martha Góes, Um porto para Elizabeth Bishop, que Regina Braga mantém em cartaz dez anos depois da estreia.

A personagem é intrigante. A poesia, espetacular. Ambas, autora e obra, são refratárias a sentimentalismo e transbordamentos. Concentram o sofrimento essencial e fundador, para o qual não há consolo. E como impressiona a solidão radical da mulher frágil e carente, autoexilada num Brasil de ricos e intelectuais (sobretudo no Rio) ou ilhada pela gente simples de Ouro Preto, cidade blindada por montanhas.

Elizabeth voltaria ainda quando, ao conhecer a família de minha mulher, descubro que a poeta e Lota faziam parte da história deles.

Todos passavam os verões juntos na Samambaia, lugarejo de Petrópolis que reunia em torno de casas modernistas e tradicionais gente conservadora e transgressora, cristãos e ateus, famílias imensas e casais gays. Uma matriarca da Samambaia resumiu num almoço o segredo da harmonia entre tanta diferença: “Meus amigos eram maravilhosos, e pouco importa o que eles faziam ou deixavam de fazer”.

A discrição dessa grande dama devia fazer bem Elizabeth, que na lembrança de seus amigos dava imensa importância à privacidade.

Conforme lembrou Lloyd Schwartz, que conviveu com ela na década de 1970 e é o grande editor de suas obras, Bishop não suportava fotografias, recusava todos os pedidos de autógrafo (assinava dedicatórias de livros apenas a quem queria presenteá-los) e jamais falava sobre poesia – e muito menos sobre sua poesia.

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Da rua estreita e de mão dupla, infernizada pelo hábito local de circular em carros com música no último volume, o que se vê da Casa Mariana são três janelas, porta e um muro de pedra. Em um poste próximo ao portão, uma placa diz: “Jesus te ama”. Provavelmente na madrugada anterior, alguém havia deixado sobre o muro uma garrafa de cerveja.

Sob o sol a pino, foi impossível não amargar uma decepção. Atordoado, não vi nem mesmo a placa comemorativa que efetivamente identifica a casa e registra a passagem pela cidade da ilustre moradora. Mas qual seria a gratificação de tê-la visto? Uma foto sem graça?

Durante o Fórum das Letras, os Nemer, gentilíssimos, abriram a casa como já fizeram tantas vezes a um grupo de jornalistas. Em Ouro Preto, me encorajaram a telefonar e pedir uma visita. Fiquei com vergonha e pensando que, talvez, fosse melhor ficar com aquele muro coberto de flores e as janelas.

A Casa Mariana é hoje, do jeito que está, o melhor monumento a Elizabeth Bishop. No tempo em que passou em Ouro Preto, ela buscava mais sossego e reclusão do que reconhecimento público. Seria melhor que virasse um centro de referência no estudo da obra de Bishop, como sonham os Nemer. Mas do jeito que está é um detalhe essencial na mitologia e na paisagem da cidade – vista da Igreja de São Francisco de Assis, ela é claramente identificável, plantada sobre uma imensa fundação de pedra que a projeta, poeticamente, num abismo.

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