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Meu querido Dapieve:
Vamos de avião.
Eu contei que meu pai queria ser piloto e me dizia vezes sem conta frases do tipo “não estudei, sou escriturário. Quer ser alguma coisa na vida, trate de estudar”. Talvez o amor dele por aviões tenha pesado em minha tenra infância. Cheguei a experimentar alguma simpatia pela nefanda águia-que-se-estabaca. Até fazer a primeira viagem…
Alguns compositores universitários foram convidados para um show em Vitória: Ivan Lins, Gonzaguinha, Sidney Mattos… Receberíamos pousada numa espécie de casa estudantil, cachês satisfatórios e passagens de avião. Não lembro se tive medo, mas, ao chegar ao aeroporto, alguém me apontou a geringonça e tive profunda vontade de chorar. Era um indescritível Viscount, o único das, creio, LAC (Linhas Aéreas Catastróficas). O treco parecia tão pequeno que duvidei que nele coubessem os artistas, mais o piloto, instrumentos musicais, minhas inesquecíveis tumbadoras. Eu era conhecido como “congueiro de dedos” por músicos mais velhos. Curti isso como se fosse uma constatação do meu talento. Só depois fui saber que era uma gozação altamente pejorativa. Entrei no closet voador suando frio e bati de frente com a sabedoria popular: uma desgraça nunca vem sozinha. Quando o motor roncou, ainda em terra, um passageiro ajoelhou-se no exíguo corredor entre os assentos e alternou orações com gritos de “me tira daqui!”. Fui salvo por um cantil que levava (e quase destruiu meu fígado, aí pelos 30 anos) ou me associaria ao passageiro, não digo nas orações, mas na berraria. A juventude tem suas compensações. Bebi o tempo todo, pensando na volta.
O pessoal de Vitória é bom de copo. Fui colocado no pássaro de retorno quase inconsciente. Você poderia pensar: um começo assim justifica os terrores aeronáuticos do Aldir.
Só que a coisa não parou aí. Voltávamos eu e João Bosco no último voo da ponte-aérea de São Paulo, depois de um ótimo show, quando enxerguei, aaaaahhhhh, a ponte Rio-Niterói e aí, você sabe, aquele suspiro, “minha alma canta, vejo o Rio de Janeiro…“. Justo ao passar pela ponte, ouvimos uma espécie de silvo sinistro e o avião fez uma violenta curva de volta. Voz do piloto:
– Senhores passageiros, devido a uma pequena avaria, pousaremos no Galeão por motivos de segurança.
Ora, uma avaria em avião nunca é pequena. Mesmo assim, não estávamos, João e eu, preparados para o espetáculo que nos aguardava no atual Tom Jobim: várias ambulâncias na pista, carros de bombeiros, outros veículos não identificados, talvez rabecões. Bosco teve um problema de engolir e, mais uma vez, meu cantil foi de grande valia: dei uns goles a ele e entornei as sobras (eu, ex-médico, sabedor dos imprevistos na vida humana, enchera a cara e o recipiente, antes de entrar no monstrengo em Congonhas).
Hora de passar para o futebol? Não. Peguei uma turbulência, voltando de Belo Horizonte, que abriu os armários da nave satânica e milhares de coisas rolaram com estrépito pelo maldito corredor. Dessa vez foi o João Bosco quem me deu umas talagadas de meu próprio cantil mágico porque eu me encontrava em estado semicomatoso. Achei que estávamos rachando em pleno ar e minha pressão caiu. Dentro de aviões, minha pressão arterial é conhecida, hoje, como Neymar.
Por último, meu voo inesquecível. Havia um pinga-pinga que saía cedinho de Porto Alegre e ia pousando-decolando de quase todas as capitais da orla pátria. Meu destino era, claro, Manaus. Saímos daqui umas 10 da manhã, com chegada prevista para ninguém sabia quando. Em Salvador, constatei com grande alegria que o comissário de bordo estava bastante bêbado e fazendo gracinhas. As doses eram pra lá de generosas. Em Recife, dois terços dos enfurnados no supositório de asas encontravam-se em estado de franca embriaguez, inclusive senhoras, cantando em coro musiquinhas obscenas etc. O momento culminante deu-se em Belém:
– Senhores passageiros, a polícia local está procurando um dos senhores que se encontra desaparecido.
Cerca de meia hora depois o bestalhão foi achado. Vagava de porre num matagal próximo. A recepção foi triunfal. Abraços, lágrimas, juras de amizade eterna, batucada (João e eu puxamos uma adaptação: o Mestre-Sala dos Ares).
Manaus no horizonte. Cantil firmemente virado, apenas por superstição.
E uma vez fora do tecnopterodáctilo, direto ao bar pra um Jack duplo on the rocks recompor os nervos em frangalhos, que o avião pode ser de metal, mas eu não.
Abraço fraterno,
Aldir
* Na imagem da home que ilustra este post: avião sobrevoa próximo à ponte Rio-Niterói (foto de Rogério Brito)