Clique aqui para ver a carta anterior Clique aqui para ver a carta seguinte
Grande Guru,
As razões para eu ter medo de aeroporto são bem menos saborosas do que as razões para você ter paura de avião. Apenas a chateação habitual. Filas, extravio de malas, demoras, atrasos, cancelamentos. Certa vez, por causa de uma tempestade de matar gente, passei oito horas no Aeroporto de Congonhas, esperando a ponte aérea ser desobstruída. Já estava lendo as etiquetas das minhas roupas para fazer passar o tempo.
Em fevereiro último, porém, descobri um aeroporto que não me causou aversão. Tinha de ser do outro lado do mundo. Narita, no Japão. Na chegada, a impressão já tinha sido muito boa. Rápida e simpática passagem pela imigração (desde que se tenha o visto adequado, claro), malas rapidamente na esteira, rápido desembaraço na Alfândega. Tudo no Japão é rapidez. Logo encontramos nossos anfitriões. Consta que houve um terremoto de cinco pontos e tal enquanto estávamos na autoestrada para Tóquio. Ninguém no carro notou. Na hora do almoço, o Roberto Kovalick, da Rede Globo, nos disse que fazia a barba e sentiu uma batidinha na janela do banheiro na hora em que a terra tremeu. Só. No mês seguinte, quando já estávamos de volta ao Brasil, é que veio a tripla tragédia, terremoto-tsunami-vazamento nuclear. Deu-me vontade de voltar correndo para ajudar o Japão. Como? Não sei. Ajudar.
Na partida, ainda em fevereiro, pegamos um ônibus que cata viajantes pelos principais hotéis de Tóquio e leva a Narita. Do lado de fora do aeroporto, uma barreira policial vistoria os passaportes. À moda japonesa. Dois ou três sujeitos entram no ônibus, fazem uma reverência, sorriem, verificam os papéis dos passageiros, sorriem, fazem uma reverência e saem do ônibus. Dura dois minutos, no máximo. Uma vez no aeroporto, era hora do despachar as malas. Tinham me dito que em voos domésticos, nos quais não se exige qualquer documento, por ser inimaginável que alguém, por qualquer motivo, queira embarcar com uma passagem em nome de outra pessoa, os funcionários das companhias aéreas eram treinados para fazer o check-in em 30 segundos. Duvidava que fizessem o mesmo em voos internacionais. Aha, não fazem! Demoram 45 segundos.
De quebra, ainda ganhamos um upgrade na classe executiva até Paris. O avião – aquele Airbus A380, saca, o de dois andares de passageiros – permite que se veja o mundo exterior por meio de três câmeras, além das janelinhas. Uma câmera fica no bico, outra no ventre, a terceira na cauda. Imagino que este seja um dos seus piores pesadelos, mestre, olhar para fora. Mas como não é o meu, entre uma taça e outra de vinho, eu espiava as estepes congeladas 12 mil metros abaixo enquanto sobrevoávamos a Rússia. Dá para entender, até lá de cima, por que Napoleão e Hitler perderam as guerras, por que o Montgomery dizia que a regra de ouro da história militar é “não invada a Rússia”. É muito chão, é muito ar. Uma balalaica plangia dentro do meu peito.
Tensão mesmo eu passei foi no aeroporto de Istambul. Tinha ido a trabalho, numa excursão de jornalistas e agentes de viagem promovida por uma ótima agência italiana que opera também no Brasil. Assim que o avião superou em sentido descendente a camada de nuvens, a primeira surpresa: nevava. Nunca tinha me passado pela cabeça que nevasse na Turquia, ainda menos às margens do Bósforo. Nunca tinha visto neve na vida, só na TV e no cinema. Não deu tempo de me maravilhar muito porque tinha de passar pelos policiais no controle de passaportes. E eu já suava mais frio que a neve, rememorando O expresso da meia-noite, a vida do Lawrence da Árabia e o gosto turco por sodomizar prisioneiros. Eu nem trazia droga alguma nem insuflava a rebelião árabe contra o Império Otomano. Contudo, pelo sim, pelo não, o meu eu trazia na mão.
Passei sem problemas, intacto. Estava a me recuperar do leve ataque de pânico, “relaxando” à espera da mala, quando um sujeito baixinho e soturno se aproximou de mim. “Jornalista?”, disse ele, em inglês. Gelei. Achei melhor não mentir. “Sim, como você sabe?”, balbuciei. “Um jornalista sempre reconhece o outro”, sorriu o estranho. “Mifu”, pensei. “É verdade”, respondi. Será que o pessoal da excursão daria pela minha falta? Será que o Alan Parker ou o David Lean algum dia filmariam minha triste história? Será que um dia encontrariam minha carcaça num banho turco?
Apelei para o mínimo denominador comum de qualquer conversação, em qualquer tempo ou circunstância. “Está nevando há muitos dias?”, arrisquei. “Não, faz só uma semana”, retrucou ele. “Blá blá?”, acho que disse. “Blá blá”, acho que ouvi. A ideia era ganhar tempo até alguém da excursão vir me resgatar. Felizmente fui salvo pela esteira. A mala apareceu, me despedi do sujeito e corri para me juntar aos coleguinhas e agentes de viagem, torcendo para o frio abafar o cheiro ruim que emanava da minha alma.
Grande abraço,
Arthur