Vampiros, zumbis e canibais

Cinema

20.04.12

“Fui a Garanhuns e não comi ninguém”, diria uma camiseta inventada em alguma conversa pela internet, mais uma piadinha infame em cima de um dos crimes mais chocantes e grotescos do século 21 brasileiro: um homem, sua mulher e sua amante mataram, mutilaram e comeram um número ainda não definido de mulheres, em Pernambuco. Os canibais preferiam o fígado, mas não desprezavam músculos. Foram encontrados pedaços de carne humana congelados no freezer da casa. E eles admitiram misturar carne humana ao recheio da coxinha (entre outros salgadinhos) que a mulher vendia pela cidade. E assim transformaram a vizinhança em canibais involuntários. Presos no dia 11 deste mês, os canibais de Garanhuns confessaram o crime, fizeram ressalva (comemos o fígado, não o coração – “ah bom!”) e despertaram a ira  dos locais. Moradores da região invadiram a casa após a prisão do trio e puseram fogo em tudo.

Duas vezes.

(O último caso de canibalismo contemporâneo que teve repercussão foi na Alemanha. Um homem colocou um anúncio na internet procurando outro homem que topasse ser morto, esquartejado e comido. Bernd Juergen Brandes se voluntariou e foi comido por Armin Meiwes.)

Numa mistura de Sweeney Todd, a peça, musical e filme em que um barbeiro mata seus clientes e com a carne deles salva o negócio de tortas que funciona na loja embaixo de sua barbearia, com uma versão fuleira do filme Soylent Green, ficção científica cult dos anos 70, Estômago, o filme brasileiro em que Nonato transforma em bife o lombo da namorada que o rejeita, e o cult de Peter Greenaway, O Cozinheiro, O Ladrão, Sua Mulher e o Amante, em que a mulher e o ladrão comem o amante preparado pelo cozinheiro, o crime é espetáculo de horror abrasileirado. Mas não para na tragédia em si. Tem mais.

O caso foi se dedobrando em duas direções, a surreal e a policial, ambas quase cinematográficas. Jorge, o líder do trio, havia escrito e registrado em cartório um livro com tom de autobiografia em que comenta o seu diagnóstico de esquizofrenia e narra a morte de Jéssica, a principal vítima do trio.

Jéssica se tornou a principal vítima por dois motivos: 1. Bruna, a amante, adotou o nome da vítima e passou a se chamar Jéssica. É como índio que comia o inimigo para assimilar suas qualidades. 2. Jéssica tinha uma filha, recém-nascida, que foi ?adotada’ pelo casal Jorge e Isabel, a mulher. Na hora em que a polícia apareceu fazendo perguntas, a menina, que hoje tem cinco anos, contou tudo para os policiais.
Poucos dias depois que a história tomou os noticiários, veio à tona o filme, feito em 2006, por Jorge e Isabel, um terror B tão B que os gritos são em falsete para não acordar a vizinhança.

Além dos motivos óbvios, o caso de canibalismo choca por outro viés – o cultural. O modernismo brasileiro exaltava a metáfora do banquete humano como celebração contínua de nossa cultura, que engole tudo que passa. A Antropofagia modernista abriu caminho para liquidificador (ou moedor de carne?) da Tropicália, que eleva a comilança à esfera das massas. O trio canibal apenas encarna essa herança à base do tratamento de choque, usando recursos nada tribais para concluir sua missão nefasta. Do registro em cartório ao registro no YouTube, o crime bizarro ainda tem traços desse tal novo Brasil: a transformação das provas do crime em comércio autônomo – e da vítima em matéria-prima para o novo negócio – exemplifica com morbidez o festejado novo empreededorismo brasileiro.

E pode ser que este primeiro ato de antropofagia brasileira transformado em espetáculo midiático (esqueça o Bispo Sardinha, que teria virado banquete dos Caetés na mesma região de Pernambuco, vejam só) anuncie a vinda de um novo monstro ao imaginário: o canibal brasileiro pode estar a caminho de ocupar o mesmo holofote que antes foi do vampiro europeu e agora está no zumbi norte-americano.

Por muito tempo, o vampiro foi o mais temido entre os monstros. Sua origem violenta (a lenda romena a respeito de Vlad, o Impalador) foi domada por Bram Stoker no final do século 19, quando transformou-o em um ser culto e sofisticado, que poderia se esconder facilmente entre os outros humanos, desde que à noite. O vampiro moderno funcionaria como uma celebração ao poder europeu, tido como eterno e que condenou o mundo ocidental à vampirização colonialista. De Drácula à saga Crepúsculo, seu domínio é inegável. Nenhum lobisomem, monstro de Frankeinstein ou múmia jamais chegou aos pés de sua influência, que tornou-se mais forte à medida em que o século virava – primeiro com a adaptação dos livros de Anne Rice para o cinema e a versão de Coppola para o livro de Bram Stoker e concluindo com a série de TV True Blood (que transformava a sanha por sangue em lascívia) e a saga juvenil Crepúsculo (em que um vampiro recusava-se a morder sua vítima, numa espécie de celebração à castidade).

Até que, no meio do século 20, surge o zumbi. Morto-vivo como Drácula, este novo personagem também vive apenas para perpetuar sua existência através da morte alheia. Como quase tudo da cultura norte-americana, o personagem não foi criado lá – foi importado da feitiçaria vodu do Haiti -, mas quando renasceu nos EUA virou vitima de uma doença incurável – metáfora para o horror indireto que a Guerra Fria fazia repousar sobre o planeta (“O Haiti é aqui”, diz Roger Corman).

Antivampiros, os zumbis não tem classe nenhuma, eles mal falam  e nem conseguem andar direito. Apenas grunhem (“Brains!”) e atacam, quase sempre em bando e querendo, não o sangue, mas o cérebro. Talvez seja a melhor metáfora para a cultura pop – e para os Estados Unidos – que a cultura pop – e os EUA – conseguiu inventar. Os zumbis deixaram a coxia da cultura trash há duas décadas, saindo do cinema de terror para os videogames, depois para os quadrinhos e TV. Walking Dead e Resident Evil são apenas os nomes mais conhecidos de uma tendência que se desdobra em livros e filmes (Brad Pitt é o produtor do futuro World War Z, escrito pelo filho de Mel Brooks, Max, autor do Guia de Sobrevivência a Zumbis, já publicado no Brasl) e até mesmo em passeatas à fantasia – as Zombie Walks acontecem nas maiores cidades do mundo (até no Brasil) – e a aplicativos para celular, como o ZombieMe (que transforma a foto de qualquer pessoa na foto de um zumbi faminto).

E agora vem o Brasil, canibal de si mesmo, horrorizar primeiro seus próprios cidadãos com essa história trágica, que já vem sendo repercutida no exterior, e criando mais curiosidade mórbida sobre o país. Passado o horror, quem sofreu além das vítimas foi o setor de salgadinhos da pequena Garanhuns. Desde que a receita dos salgadinhos de Isabel veio à tona, todos perderam o apetite por coxinhas, empadinhas, risoles e quetais. Ninguém mais compra salgadinho na rua. Bando de coxinhas…

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