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JP,
Entendo perfeitamente a tua aflição. Já visitei esse lugar “do meio” de que você fala, e sei o quanto pode ser enlouquecedor estar aí. Se serve de consolo, posso te lembrar que a posição tem suas contrapartidas. O que é escrever, no fim das contas, senão se colocar nessa pequena brecha entre a interlocução e o silêncio? (Desconfio que isso fale menos da nobreza da nossa ocupação do que de sua insalubridade, mas vamos deixar isso pra lá.) Respira fundo, enfim, e mete bronca nesse romance.
Outra coisa. Faz pelo menos cinco anos que escuto você se queixando do Rio, dizendo que não aguenta mais, que precisa ir embora. Tenho que perguntar: por que você não vai? Se tudo te causa tanta repugnância, qual o empecilho de fechar a lojinha? Não estou sugerindo um adeus definitivo, mas uma pausa estratégica, dessas que renovam a nossa fé nas coisas e apagam um pouco do ranço acumulado pelo, digamos, excesso de convivência. Já tive esse momento com São Paulo, e foi bom fugir ? e melhor ainda voltar.
Aqui em Chicago o calor deu um alô rápido, mas logo voltou pro covil. Dá pra ver na cara das pessoas a ansiedade pela primavera. Depois de um inverno tão longo, é difícil não se transformar numa espécie de groupie meteorológica, soltando gritinhos a cada vez que o termômetro passa dos quinze graus. Basta bater nos dez, aliás, e já tem maluco desfilando de regata. Num rasgo de empolgação, os vizinhos de baixo ligaram o ventilador de teto semana retrasada e não desligaram nunca mais, e agora meu quarto inteiro vibra como uma torradeira com defeito.
Pelo menos as árvores já começaram a florescer. Nos Estados Unidos até as plantas obedecem à lei.
Lendo tua carta, me lembrei de um documentário que assisti outro dia sobre o Bill Cunningham, o fotógrafo de moda do New York Times. Você já viu? O sujeito tem 84 anos e até um ano atrás morava num estúdio minúsculo dentro do Carnegie Hall, de onde acabou desalojado pela prefeitura ? a contragosto, teve que se mudar pra um apartamento maior. No estúdio, que não tinha banheiro nem cozinha, ele dormia num colchonete enfiado no meio de uma montanha de arquivos e caixas de fotos.
O cotidiano do cara é de uma simplicidade extraordinária. Vestindo o mesmo casaco azul, todas as manhãs ele monta numa bicicleta e sai pela cidade atrás de fotos de anônimos, que reúne e publica numa seção do jornal. Por também fazer a coluna social, vive sendo alvo de convites e solicitações, além de ofertas infinitas de mimos e jabás. Ele não aceita nada. Depois de tirar as fotos, volta sozinho pra casa e vai jantar numa deli caindo aos pedaços. Na única vez que aceitou receber um prêmio, fez um discurso rápido sobre o próprio trabalho e, ao final, com a voz embargada, disse que o segredo da vida continua o mesmo: aquele que procura a beleza vai acabar encontrando ? e então desatou a chorar.
Saber da existência do desse sujeito me fez um bem estranho, como se a minha cabeça tivesse ganhado um novo anticorpo contra os fantasmas que insistem em me atormentar. É bom pensar nele. Dá uma certa vergonha de viver querendo e sofrendo tanto. Desconfio que isso tenha alguma coisa a ver com o Monastério de Po Lin.
Abraço,
Chico
* Na imagem da home que ilustra este post: o fotógrafo Bill Cunningham.