Fim dos tempos: o salgadinho de estrogonofe

Correspondência

08.02.12

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JP,

 

Também não exageremos. Pra falar a verdade, aquela conversa sobre estar “vivendo com calma” é mais reflexo de uma vontade que uma constatação empírica. Porque o perrengue não passa, meu amigo. A gente tapa um buraco aqui, abre outro na ponta de lá. Mas eu não quero transformar essa correspondência num chororô ensimesmado. Passemos a assuntos mais pungentes. Tuas aventuras orientais, por exemplo.

Caceta, meu. Você me aparece com mafiosos macauenses, limusines em fuga, venezas reinventadas, quebra-paus em esperanto ? peripécias, enfim, dignas de um Jason Bourne das letras nacionais ? e no final reclama de tédio e cansaço? Assim eu perco meu restinho de fé na humanidade. Você pergunta quando a gente vai parar de discernir o que é real do que é cópia, mas eu só consigo pensar que o futuro já chegou, que é questão de minutos pra que o fim dos tempos deixe de cerimônia e arrombe a porta de vez. Taí o salgadinho de estrogonofe que não me deixa mentir.

A luta continua, enfim, e aqui eu sigo em meus obstinados esforços de integração. Semana passada estive com uns colegas de curso no Duke of Perth, um pub escocês cuja carta de uísque é mais intrincada que o Mahabharata e que às sextas oferece um all-you-can-eat de fish & chips que é simplesmente brutal. Meus colegas, quando devidamente calibrados, mostram-se pessoas afáveis e carinhosas, e por uns momentos tenho a impressão de que eles não são tão diferentes de nós quanto aparentam. Existe uma frieza inata nos americanos, um não-me-toques que, se tem óbvias raízes puritanas, também parece ter algo a ver com os ideais nacionais de liberdade e autodeterminação ? você não encosta em mim, eu não mexo com você, cada um segue quietinho em sua caminhada rumo ao Grande Sonho Individual. É esquisito, mas tem sua beleza.

Também concluí com sucesso minha busca por um Corinthians local. Não foi fácil. Esporte aqui é profissional demais, e eu não consigo conceber paixões clubísticas sem o mínimo de amadorismo e chinelagem. Pra completar, Chicago só tem um time por modalidade esportiva, o que, convenhamos, é quase tão deprimente quanto não ter nenhum. Apenas o beisebol foge à regra, e tive que finalmente me curvar a esse esporte abominável, que sempre me pareceu uma espécie de brincadeira infantil arruinada por um legalista com TOC.

Desde o começo pareceu evidente que meu escolhido seria o White Sox, o clube da zona sul, de raízes operárias, alvinegro e popular. Mas aí descobri a história do Chicago Cubs, e todo o resto ficou pra trás. Os Cubs são os maiores perdedores da história do esporte coletivo americano. Nenhum outro time profissional, em qualquer modalidade, ficou tanto tempo sem ganhar um campeonato. São 104 anos de fila, 67 sem chegar a uma final. O curioso é que, ao contrário do que se poderia imaginar, o século de derrotas não transformou o clube num Ameriquinha. Os Cubs ainda são uma das maiores equipes do país, com uma legião de fanáticos que segue lotando estádios à espera da redenção, ciente de que esse dia pode demorar a chegar, mas disposta a se divertir enquanto isso.

A história dos Cubs é um acumulado impressionante de urucubacas, infortúnios e aflições. Tudo dá errado, sempre. Dizem que a zica começou em 1945, quando um sujeito chamado Billy Sianis foi assistir a um jogo do time acompanhado de Murphy, seu bode de estimação. Lá pelas tantas o bicho começou a feder, e Billy foi convidado a se retirar do estádio com o ruminante. Foi o que bastava pro sujeito lançar uma praga sobre o clube que, segundo os especialistas, é diretamente responsável pela inhaca centenária. Tentou-se de tudo pra reverter a mandinga. Bodes foram levados pra comer um pouco da grama do estádio; membros da família Sianis receberam convites sucessivos para jogos e celebrações; bruxos e exorcistas organizaram rituais de purificação; mais recentemente, num gesto desesperado, um fã pendurou uma cabeça ensanguentada de bode numa das estátuas que ficam na porta do estádio. Claro que nada funcionou.

Tem como resistir a uma história dessas? Se, como você bem diz, tudo no mundo parece caminhar para a imitação e o fetiche, as derrotas sucessivas do Chicago Cubs soam como uma dessas verdades inabaláveis, capazes de nos conectar com alguma coisa ancestral e permanente, além de oferecer a chance ? cada vez mais rara ? de uma experiência efetivamente compartilhada.

Tô extrapolando, eu sei. Mas vê pelo lado bom: arrumei um brinquedinho novo. Agora só me falta aprender as regras.

Grande abraço,

Chico

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