Educação do olhar

Correspondência

14.02.12

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Chico,

Demorei pra te responder porque está complicado aqui. Na semana passada, seu Jason Bourne das letras nacionais caiu de cama com febre alta. Fui parar num hospital e passei alguns dias internado. Não lá, mas no quarto de hotel de janelas trancadas assistindo à televisão estatal chinesa – imagina a estética dos anos 70 com cenários de LED no fundo e muita cor. Numa sexta à noite, vi um programa de três horas onde um sábio explicava os feriados nacionais para um auditório muito interessado. No jornal nacional deles, sob trilha sonora sinfônica cheia de longos e dramáticos crescendos, vi dez minutos de imagens de chineses retornados ao seu país. Um chegou a beijar o chão do aeroporto, como o papa. Nos intervalos, eu dormia, tentava ler e ia ao café panorâmico, no décimo-sétimo andar, de chinelos e sobretudo, olhar os prédios de cima. Agora estou feliz de ter abandonado o hotel.

O cheiro de perfume e ar condicionado estava me deixando meio louco.

Ou era a febre, a solidão que dá a febre, as perguntas que te faz a febre.

Desembarquei em Hanói ainda febril. A burocracia do Vietnã é a pior da Ásia, e eu tive uma prova disso antes do que poderia imaginar. Faltava algum carimbo ou adesivo para o visto, e todos os turistas, inclusive e principalmente a adolescente com a bandeira dos Estados Unidos estampada na camiseta, tiveram que esperar por horas.

A expressão sob os quepes dos milicos de verde musgo desse estado comunista não convidava a nenhum tipo de argumentação. Se em 980 eles expulsaram os chineses depois de mil anos e no século XV tiveram que os expulsar novamente, no século XIII resistiram contra 500 mil homens do Kublai Khan e, como sabemos, no século XX venceram uma guerra contra a França e outra contra os Estados Unidos. A autodeterminação do povo do Vietnã e a sua luta contra as maiores potências da humanidade pelo direito a ser dono da sua própria terra e de si mesmo não tem precedentes. Não seria eu a tentar abrir um, reclamando sobre a demora de um carimbo.

Chegar numa cidade é, antes de tudo, aprender a vê-la. É uma educação do olhar. E Hanói não é uma cidade fácil de ver: é confusa, barulhenta, escura, a arquitetura é fragmentada, as ruas são estreitas, os prédios ainda mais, e você tem a sensação de que será atropelado a qualquer momento por uma moto – o número mais comum é o de dois milhões para sete milhões de habitantes, mas eu acredito que sejam mais motos. Todo mundo parece não só ter uma moto, mas também ser a própria moto. Numa cidade onde a maioria absoluta dos cruzamentos não tem sinal de trânsito, essa fusão entre homem e máquina somada a algum tipo de consciência coletiva oriental é o que evita maiores acidentes.

Olhar um cruzamento monstruoso desses sem sinal em Hanói pode te fazer, por alguns segundos, voltar a ter fé no coletivo. É importante porque, logo depois, você terá que cruzar o cruzamento em Hanói: devagar, sem mudar o passo, olhando para a frente. O importante é não ter pânico e, acima de tudo, confiar no outro. Você oferece a sua vida em silêncio a cada um desses desconhecidos quando se joga no cruzamento.

No ocidente, algo assim seria impensável.

Achei sensacional a história dos Cubs. Virei mais um novo torcedor do seu clube. Vamos ver se vemos um jogo aí juntos. Eu não entendo nada de beisebol, as regras me parecem um remendo interminável, mas eu gosto da ideia de que um sujeito barrigudo com tiques nervosos possa ser um ídolo esportivo. De alguma maneira, parece ser um esporte para sujeitos que não são exatamente atletas, e eu consigo me relacionar com isso em diferentes níveis, não apenas em relação ao meu sedentarismo. Afinal, literatura também me parece uma forma de arte para sujeitos que não são exatamente artistas.

Chico, em Hanói dei para ir a museus da guerra e entrar em pagodes. Um adivinho chinês leu minha sorte e disse para eu entrar e dar uma volta em todos os templos que encontrar pela frente. Ele disse que eu estava precisando.

 

Abraço grande,

 

JP

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