Perder a estação

Literatura

01.10.15

No poema “Uma arte”, Elizabeth Bishop diz que se deve aceitar perder um pouco a cada dia. Começa-se aos poucos, com coisas menores, uma chave, quem sabe o relógio da mãe, e depois “com mais critério: / lugares, nomes, a escala subsequente / da viagem não feita. Nada disso é sério”.

Num estágio mais avançado, perdem-se cidades, rios, continentes, impérios.

O livro Estação Atocha, do poeta americano Ben Lerner (publicado recentemente no Brasil pela editora Rádio Londres, com tradução de Gianluca Giurlando), panorama bastante fiel dos cursos de escrita criativa das universidades americanas, é sobre perder. O protagonista Adam Gordon, também poeta e também americano, está em Madri e sabe que o encantamento tem prazo de validade. “Não porque na Espanha as coisas fossem intrinsecamente mais imediatas, mas porque o ambiente e minha relação com ele ainda não eram padronizados”.

Com uma bolsa de um ano, Gordon passa boa parte dos dias fumando maconha, tomando café, fingindo que está ocupado demais. Não pode aparecer online o dia inteiro. Ao longo da estadia, ele se dá conta de que todo esse encantamento vai se esvair quando ele se acostumar, quando a novidade deixar de ser novidade. “Quando uma pedra na Espanha não mais me parecesse, em sua essência, mais pedrosa que as rochas sedimentares do Kansas”.

Uma viagem quase sempre se propõe a muito mais do que pode cumprir. A de Gordon inclui fazer uma pesquisa sólida, compor o poema prometido à fundação que lhe cedeu a bolsa, voltar com um espanhol não só fluente mas também rebuscado, conhecer a cidade como um legítimo local, ler tudo o que puder, falar com desenvoltura sobre a Guerra Civil Espanhola, namorar uma nativa.

Interior da estação Atocha, em Madri

Diariamente, quando sai de casa, ele leva na bolsa um punhado de comprimidos brancos e dois livros: uma antologia do Lorca, na tentativa de embarcar na vivência espanhola com mais propriedade, e outro do Ashbery, seu poeta preferido – por sinal, é de Ashbery o poema que dá título ao livro de Lerner, “Leaving the Atocha Station”. Caminha até o Museu do Prado, alcança a sala 58 e lá fica, prostrado de haxixe, diante da tela “A deposição da cruz”, de Roger van der Weyden. A ideia de passar horas olhando para o quadro, absorvendo cada detalhe das pinceladas, é ter o que ele chama de uma “profunda experiência artística”.

Uma profunda experiência artística: escolher uma cidade, escolher um quadro, ficar diante do quadro o tempo que puder, dois minutos, um ano. A proposta não teria sentido se fosse na própria cidade, familiar demais, por onde se caminha mecanicamente. Escolher uma outra cidade é como botar uma cidade na moldura. E ficar de frente pra ela, olhando. De fora.

A graça de Estação Atocha (o livro é engraçadíssimo) é que, não bastassem as expectativas da viagem, está a dificuldade de Gordon em entender a língua e em se fazer entender, já que, é claro, muito se perde na tradução. Num recital de poesia, por exemplo, o protagonista tem consciência de que será compreendido só em parte – se tiver sorte. Por isso, no auge da sua pose hipster, lê para o público num “tom monótono e deliberadamente indiferente”. O fracasso, Gordon sabe, é garantido.

Em outro momento do romance, Gordon está em uma festa. A maconha e a música alta fazem com que a confusão se torne ainda mais assombrosa. Ao flertar com Teresa, uma espanhola, o poeta tenta decifrar o que ela está lhe contando. Soa no mínimo indistinto: “Descreveu a morte do pai quando ela era criança, ou talvez como a morte do pai a fazia sentir-se como uma criança cada vez que pensava nela. Ele tinha morrido jovem, mas agora lhe parecia velho, ou ele era velho quando morreu, mas nas lembranças dela se fazia jovem de novo”.

Ou alguma coisa por aí.

Perder é uma arte. E Adam Gordon não deixa mentir.

 

“Uma arte” foi traduzido por Paulo Henriques Britto