Camisa branca de linho

Correspondência

27.08.12

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Ei, Angie, que bom receber notícias suas, saber que seu livro está quase pronto!

Eu gosto do título. É forte e, na minha opinião, o poema homônimo é o texto mais forte que você já escreveu. Quando o li pela primeira vez, há uns dois anos, à beira da piscina de um clube que eu frequentava em Pinheiros, fiquei tão impressionado que desisti de nadar, juntei minhas coisas, voltei pra casa e, depois de um turbilhão de sensações estranhas desencadeadas pela leitura, pensei: sou grato à Angélica por ter colocado no mundo esse monstrinho.

Então você foi parar em Quito? Incrível como você está toda hora na estrada. Que disponibilidade! Eu não acho tão fácil viajar. Tenho pavor de burocracia. Só a ideia de procurar meu passaporte já me deixa irritado. Além disso, raramente consigo escrever durante a viagem. Tenho alguns insights quando estou num lugar diferente, mas preciso estar numa situação de rotina pra transformar “matéria” em poema. Mas às vezes é importante sair de casa e se abastecer de coisas novas, claro.

Na verdade, adoro viajar. Tenho a impressão de que se eu não fosse escritor, gastaria todo dinheiro que ganhasse viajando. Assim como sou, sinto que devo ficar no meu canto e me concentrar. Talvez eu esteja enganado.

Mas você tem razão: brasileiro, em geral, dá as costas pra América pobre, índia ou negra. Eu mesmo não sei quase nada do Equador, nem nunca li nenhum autor equatoriano. Nem venezuelano. Nem boliviano. Pra piorar, adoro a Argentina. Em 2005 morei seis meses em Buenos Aires. E escrevi uma novela sobre a temporada que passei lá. A meu favor, só o fato de que nesse momento estou relendo César Vallejo e terminando a primeira metade da poesia completa do Antonio Cisneros (dois peruanos!). O Vallejo, há muito tempo, é dos meus poetas preferidos. “Hoy me gusta la vida mucho menos,/ pero siempre me gusta vivir: ya lo decía” é um poema pra se ter sempre no bolso. Do Cisneros ? de quem eu conhecia a antologia publicada pela CosacNaify ?, curto bastante a maneira como ele faz lirismo & cinismo andarem juntos, e nunca separados. É algo que me interessa.

Não, não terminei os contos. Desisti deles temporariamente. E também peguei frilas demais esse mês. Umas revisões. Acabei ficando sem tempo nem cabeça pra escrever qualquer coisa. Mas deu pra ler poesia nos intervalos. Além do Vallejo e do Cisneros, li Keats (que foda essa estrofe de “La belle dame sans merci“: “I met a lady in the meads,/ Full beautiful ? a faery’s child,/ Her hair was long, her foot was light,/ And her eyes were wild“) e Cesário Verde. Olha esse verso do portuga:

Ó minha loura e doce como um bolo!

É tão visual, moderno, engraçado. E me fez pensar o seguinte: se a mulher do poema fosse “loira” e não “loura”, ainda seria “doce como um bolo”? Acho que não. Acho que o “ou” ecoa no “o” de “bo”, dá solidez, peso, massa à mulher, permitindo que ela seja um bolo. Se fosse loira, seria mais angulosa e aérea. Não seria um bolo. No máximo, uma porção de fios de ovos ou um quindim. (Perdoa a tosqueira da análise. Não sou bom nisso. Nem entendo muito de doces.)

Já falei demais sobre poesia? Deixa eu só te contar uma da Flip que acabou me valendo um poema de circunstância (e uma camisa de linho, como se verá em seguida).

Você não conhece o Dárkon Roque, certo? É um designer minimalista e um bêbado extravagante. Macumbeiro, sambista, neo-hippie da Vila Madalena fumador de charuto cubano. Foi ele que fez o projeto gráfico do meu segundo livro. A origem do nome dele eu desconheço. Sou péssimo repórter. Somos amigos há dez anos e nunca pensei em perguntar isso a ele.

O negócio é o que o Dárkon (os Burros n’Água) estava em Paraty, com mais meia dúzia de amigos em comum, e na terceira manhã do evento me convidou, por torpedo, pra dar uma volta de barco com eles e almoçar numa ilha. Nasci no interior, Angélica. Falou em “ilha” pra mim eu imediatamente imagino ninfas homéricas vestidas apenas com guirlandas de flores lilases lendo o Cântico dos Cânticos com lágrimas nos olhos e sorriso nos lábios, hidromel doze anos servido a rodo e carneiros assados inteiros por eunucos uruguaios. Topei na hora. E me mandei como estava ? camisa, calça e tênis ? pra ponte de onde o Dárkon me disse que o barco sairia.

Acontece que minha camisa era xadrez, vermelha e preta, e isso ofendeu profundamente o Dárkon, vestido, como de costume, com uma blusa-bata cor de saco de estopa e um colar de contas verdes. Fazer o quê, não dá pra agradar todo mundo. Subi no barco e fingi não ouvir os protestos, a essa altura de toda a tripulação (sete pessoas), dirigidos a mim. Ah, o hippies da Vila Madalena…

O Dárkon disse que estava sem dinheiro e sugeriu que fôssemos na frente. Ele e a Clara, uma menina inteligente e muito rouca que trabalha com ele, passariam no banco e depois pegariam outro barco. Nos encontraríamos dali a duas horas na casa da Naia, ex-mulher do Dárkon, que mora numa ilha (!), e lá pensaríamos num lugar pra almoçar.

No deque da casa da Naia, esperando o Dárkon e a Clara, tomamos umas cervejas e fumamos um baseado.

Então, quando o barco deles se aproximou o suficiente, o Dárkon, fumando um charuto na proa com as pernas cruzadas e rindo, gritou meu nome e jogou uma caixa na minha direção. Uma caixa da Richard’s, dentro da qual havia uma camisa branca de linho. Eu aceitei o presente, acreditando que era um bullying amoroso, e troquei de camisa ali mesmo no deque.

Depois comemos a melhor lula do planeta num restaurante da Praia Grande. Na volta pra Paraty vimos golfinhos de perto. O pôr do sol no mar despertou meu velho desejo de ter nascido carioca. Morar em São Paulo dá uma saudade do Brasil…

O que importa disso tudo é: fiz um poema pro Dárkon, agradecendo a camisa. Por questões de métrica e rima, troquei a lula pela bizarra combinação “moqueca e nhoque”. Te mando abaixo. Espero que te divirta.

E me desculpe o e-mail longo. Prometo que o próximo será mais curto.

Um beijo,

Fabrício

PS1: Sim, vamos andar na Liberdade!
PS2: Ovos rancheiros! Faz tempo que não faço. Farei quando você vier.
PS3: Venha!

BALADA AGRADECENDO UMA CAMISA

fui feliz em Paraty
me senti na Belle Époque
bebi rum com Ana Lima
com Estevão Kaiser Bock
pra Valéria cantei samba
Clara me cantou um rock
Karmo tava c’a macaca
o mar estava bem lóki
minha camisa era branca
presente de Dárkon Roque

paramos na Praia Grande
pra comer moqueca, nhoque
conheci a mãe da Naia
que adora Jackson Pollock
fotografamos biguás
(pois somos contra bodoque)
vimos golfinhos de perto
um deles de dreadlocks
eu na proa com a camisa
que ganhei de Dárkon Roque

voltamos para a cidade
dir-se-ia que a reboque
do crepúsculo violeta ?
a beleza é sempre um choque ?
a vida como se abria
revelando um novo enfoque
mais intenso e valioso
do Chuí ao Oiapoque
que bonita era a camisa
que me comprou Dárkon Roque

foi um Dia Mastroianni ?
no ar soavam alboques ?
pela camisa de linho
agradeço a Dárkon Roque

* Na imagem da home que ilustra este post: algumas das ilhas que compõem a baía de Paraty

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