Xingar o juiz é o mínimo

Correspondência

05.12.11

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Grande Guru,

Lembro-me de uma vez em que saímos para beber em Vila Isabel. Quer dizer, saímos eu e o nosso amigo Paulo Roberto. Você fugiu mesmo. Os três ficamos bebendo Jack Daniel’s no seu bunker literário na Tijuca Profunda (do qual o meu, nas Laranjeiras Médias, é mera fotocópia mal tirada) até a sua patroa se recolher. Saímos pé ante pé e fomos procurar um determinado bar na rua dos Artistas, bar que, você nos garantia, era ótimo. Se bem me lembro – e hoje em dia, bem me lembrar é quase tudo que não faço, acho que já disse isso, né? -, você estava numa daquelas fases que gente como a gente periodicamente atravessa: lei seca compulsória, probrema no figo. Se alguém interceptasse esta e-pístola se perguntaria: “Mas, peraí, como pode, lei seca compulsória tomando Jack Daniel’s?!” Esse alguém não desconfiaria do que somos capazes…

Ou, vá lá, fomos capazes.

Era uma noite estranha. As ruas estavam desertas, não só porque fazia muito frio para o Rio como porque, na véspera, um bonde do tráfico havia percorrido triunfalmente a Zona Norte, diante da apatia do poder público da ocasião. Você não sabia direito como chegar no tal bar e, quando avistamos alguns heróis tomando cerveja em frente a uma porta semicerrada, desceu do carro do Paulo Roberto para pedir informações. Dentro do carro, imaginamos a cena do sujeito chegando em casa, trêmulo de emoção: “Ô, Alaíde, tu num sabe quem parou lá no boteco pra pedir informação hoje! O Aldiblanque!” E a Alaíde: “Bebeu pra cacete hoje, hein, Osvaldo? Vais dormir no sofá. Boa noite.”

Depois de tanto esforço para chegar no bar, que aliás era bem mais ou menos, finalmente tomando nossa cerveja e comendo um queijo minas light, parte da sua dieta, você nos olhou rútilo de lágrimas e declarou: “Já estou com saudade da Mari!”

Foi lindo, meu amigo.

Assim como essa sua declaração de agora. Imagino que a dor no ombro dela tenha sido amenizada, ao menos temporariamente, pelo seu carinho. Você tem razão: milhões e milhões (bilhões?) de pessoas vivem e morrem sem conhecer esse sentimento.

Milhões e milhões também jamais conhecerão as dores e delícias de outra paixão, a do futebol. Seu Vasco fez bonito. Lutou pelo título até a última rodada, com dignidade, depois de ter conquistado a Copa do Brasil. Parabéns. O meu Botafogo… Desistiu de brigar pelo campeonato antes da hora e só se lembrou de que uma classificação para a Libertadores da América não seria nada má quando já era tarde demais, na derradeira rodada, jogada com brio depois de cinco derrotas seguidas. Vai disputar de novo a Sul-Americana, prêmio de consolação que, quando começa a ser disputado, parece fardo.

Interessante seu PS sobre o Leandro, expulso contra o Fluminense por chamar o árbitro de “ladrão” pra baixo. Sejamos sinceros, sem correção política: em certas situações, xingar o juiz é o mínimo que esperamos de nossos jogadores. Criou-se, no Brasil, a seguinte ficção: rouba-se em todas as áreas da vida nacional exceto na do futebol. Quer dizer, tem gente que recebe propina em garagem de Brasília, tem gente que manda dinheiro público para conta secreta na Suíça, tem gente que desvia bolsa merenda para comprar bolsa Louis Vuitton, mas, ah, não tem gente que rouba no placar? É preciso tal grau de suspensão da descrença para sustentar um troço desses que o sujeito deveria ser internado por deficiência mental.

Essa lorota é tão arraigada que, anos atrás, acreditou-se em esquema de manipulação de resultados formado por um juiz só, o Edílson Pereira de Carvalho. Saca só. Esquema? Um único juiz? Sei. Lembra do Edílson? Beijava um santinho de papel que trazia junto aos cartões amarelo, vermelho e do banco antes de dar o apito inicial. (Provavelmente acreditava em design inteligente divino, o mundo tem tantos pulhas religiosos quanto ateus.) Outro dia, as câmeras de TV flagraram os jogadores do Fortaleza lembrando aos colegas do CRB um acerto prévio – que prejudicaria o Campinense, rebaixando-o para a Série D – e o STJD, o que fez? Manteve o resultado do jogo, um suspeitíssimo 4 a 0, mandando o Campinense para a vala. Não dá para querer moralizar o país se o futebol for mantido num mundo à parte, de faz de conta.

Por isso, faço coro a você no elogio ao Leandro. E ao Felipe, que depois do jogo com o Flamengo foi peitar o juizinho que ignorou um pênalti clamoroso sobre o Diego Souza. A claque dos eternos beneficiados – porque têm mais torcida ou mais poder econômico ou os dois – criou a chorumela de que, no futebol, gritar “pega ladrão!” é “chororô”. Imagina se a moda pega no resto da sociedade, mestre? Os corruptos vão dormir de bunda (perdão, Aldo) para cima, despreocupados.

Grande abraço,

Arthur

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