Exílio em Laranjeiras

Correspondência

10.10.11

 Clique aqui para ver a carta anterior                                                                     Clique aqui para ver a carta seguinte

 

Grande Guru,

 

Li certa vez, numa revista destinada à comunidade judaica, uma fábula que era mais ou menos a seguinte, na medida em que minha memória a piora ou a melhora. Lá pelo tempo do Antiquíssimo Testamento, um rei hebreu encomendou a um rabino um texto para ser inscrito na parede de um novo palácio. Ele queria adorná-lo com a frase mais feliz do mundo. Quando a encomenda ficou pronta, veio: “E o filho enterrou o pai, que antes tinha enterrado o avô, que antes ainda tinha enterrado o bisavô”. O rei ficou puto. Onde já se viu confundir felicidade com enterros?! O rabino, porém, retorquiu que a maior felicidade que poderíamos ter era enterrar nossos pais, e não a alternativa.

Enterrar filhos não está na ordem natural das coisas, é a suprema infelicidade. Imagino a sua dor. Não, não imagino. Pressinto sem jamais querer sentir. Enterrar as senhoras nossas mães, como nós dois já enterramos, sim: é o máximo de felicidade a que podemos aspirar neste vale de lágrimas. Claro, só dá para admitir isso assim, à distância, numa fábula, fi-lo-so-fi-ca-men-te. Porque, na hora, dói pacas. Depois abranda, lateja. O Barthes não suportou viver muito mais para perceber que, ok, o luto não acaba, se interrompe pelas exigências do trabalho e da mundanidade, como ele mesmo escreve no seu Diário, mas a gente compreende que não havia nada mais feliz a acontecer – para você ver como a vida é uma bosta… Ele não pensou no que seria da dona Henriette se tivesse, velhinha, de enterrar seu querido Roland depois de toda aquela agonia pós-atropelamento. O rabino da fábula estava coberto de razão.

Convivi indiretamente com rabinos desde muito cedo. Não, não fui circuncidado logo depois de nascer. É que, se você é da Tijuca, sou de Copacabana, aquela Tijuca com vista para o mar. Mentira que a Barra da Tijuca seja a Tijuca praiana, como querem os novos-ricos da área. Aquilo lá é uma Brasília com umidade alta. Copacabana, sim, é a Tijuca de sunga e biquíni, ambos meio caídos em diagonal na bunda. A vista para o mar serve para dar um vernizinho metalizado, só que a maresia a tudo corrói.

O copacabanense também representa o grosso nato, mas posa de homem do mundo, com cafajestadas em vários idiomas. Hoje, como autoexilado em Laranjeiras, já não me relaciono bem com minha terra quase natal (nasci no Hospital da Lagoa, de pais que então moravam em Ipanema e logo se mudaram para o Posto 5 da minha infância, adolescência e primeira maturidade). Não porque eu tenha deixado de ser grosso. Ao contrário, piorei. Como a “Princesinha do Mar”, que está mais para “Rainha Mãe do Brejo”, velhota que insiste em se vestir de prostituta infantil. Falta-lhe senso de ridículo.

Digressiono, digressiono.

Falava dos rabinos, certo?

Uma das coisas que devo a Copacabana, além da eterna simpatia pelas marafonas, do meu dentista, do meu oftalmologista e da saudade do mar e da Modern Sound, é a oportunidade de ter tido amigos de origens distintas, que, sem querer, cedo me ensinaram coisas fundamentais, tipo “catalão não é espanhol, seu estúpido” e “quem chama o Oriente Médio de Terra Santa não bate bem da bola”.

Tive dois pares de “melhores amigos” na época da vida em que a gente se preocupa em ranquear essas besteiras. O primeiro par de amigos era composto por um filho de catalães (ele tinha a primeira camisa do Barcelona que vi na vida!) e um judeu sefardita, que era de origem marroquina, se de novo não me falha a memória. O segundo par, por um filho de libaneses cristãos e outro judeu, este, sem dúvida, um asquenaze de origem polaca, via Uruguai. Eu ali sentado na areia, no meio, meio carcamano, meio trasmontano, ateu por parte de pai, ecumênico pelo de mãe (meu pai, distantemente vascaíno, ganhou essa parada). Dos primeiros amigos, recebo notícias esporádicas. Com os segundos, ainda tomo uns chopes sempre que as agendas permitem, o que é raro.

Eles me ajudaram a ter a vista para o mar.

 

Abração,

 

Arthur

 

* Na imagem da home que ilustra este post: avenida Atlântica, década de 1950, Rio de Janeiro (foto de José Medeiros/acervo IMS)

 

, , , ,