Compra-se um novo passado

Cultura

28.09.18

Procurava-o toda uma classe, a nova burguesia. Eram empresários, ministros, fazendeiros, generais, gente, enfim, com o futuro assegurado. Falta a essas pessoas um bom passado, ancestrais ilustres, pergaminhos. Resumindo: um nome que ressoe a nobreza e a cultura. Ele vende-lhes um passado novo em folha. Traça-lhes a árvore genealógica. Dá-lhes as fotografias dos avôs e bisavôs, cavalheiros de fina estampa, senhoras do tempo antigo.

 

O trecho é meu favorito no livro O vendedor de passados (Gryphus Editora), do escritor angolano José Eduardo Agualusa, lançado no Brasil na Flip de 2004 e mais atual do que nunca. Para onde quer que se olhe, nossa memória é alvo de disputa política, econômica, cultural, marca de países colonizados, nos quais o acesso à própria história é também uma forma de privilégio.

No Brasil, você pode ser descendente de português, italiano, alemão – e ter direito a um passaporte para a Comunidade Europeia –, ou pode ter vindo do continente  genericamente denominado África, o que significa que, na diáspora, você perdeu suas raízes, sua história, seu passado. Pode ainda ser descendente de indígenas, outro nome genérico que apaga as distinções entre os tantos povos e tribos originárias, e ter sido varrido da história do país, já que no incêndio do Museu Nacional nada restou da etnologia indígena, inclusive de povos desaparecidos.

O livro de Agualusa me voltou à memória por causa do incêndio, num primeiro momento identificado apenas como uma perda do nosso passado imperial, como nas reações de alguns governantes. De fato, o prédio foi residência da família imperial, guardava um acervo importante daquele período, e estava comemorando 200 anos em 2018. Que a sua total destruição tenha se dado justo na data do bicentenário não me parece pouco importante.

Foi a trágica coincidência que me fez lembrar da passagem do livro de Agualusa. No trecho que escolhi, há uma nova burguesia capaz de ganhar dinheiro, se estabelecer na política, de ter um futuro promissor, mas ainda assim carente de um passado nobre que os livre de ser apenas mais uma numa sociedade colonizada, em que o poder está necessariamente na mão dos que o fundam na origem. A cidade do Rio de Janeiro – desde sempre incapaz de preservar sua história, em parte pois lançada em mais uma aventura de reconstrução – sedia o Museu do Amanhã assim como os personagens do livro apostam num “futuro assegurado”.

É verdade que a colonização portuguesa em Angola tem características muito diferentes da brasileira, mas aqui acredito que posso tomar o conceito de “colonialidade do poder”, forjado na obra do sociólogo peruano Aníbal Quijano, para pensar o solo comum que une a experiência de sociedades colonizadas, nas quais a distinção entre exploradores e explorados se dá a partir da diferença entre colonizador e colonizado. Aos que acreditam ter superado sua dupla condição de explorado/colonizado falta justamente um passado glorioso que os coloque ao lado do colonizador e, supostamente, portanto, ao lado do poder.

É justamente porque o Museu Nacional não era apenas uma edificação histórica que guardava a nossa memória imperial que sua perda é uma tragédia. Ali, entre antropologia e arqueologia, no trabalho científico de centenas de pesquisadores e pesquisadoras, estava em jogo nosso passado anterior à colonização e uma chance ínfima de construção de outro futuro, não assegurado ainda a quem não tem passado. Ao contrário da Angola de Agualusa, aqui não houve uma guerra de libertação. Foi no museu incendiado que a princesa assinou a independência às pressas, enquanto D. Pedro voltava do Ipiranga. Talvez seja por isso mesmo que a nossa experiência social ainda é a de uma guerra cotidiana entre os que podem e os que não podem pertencer ao território brasileiro e fazer parte do presente e do passado.

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