Estas águas, este país

Colunistas

07.09.16

Como parte das comemorações dos seus 20 anos, o Museu de Arte Contemporânea de Niterói – o icônico MAC, projetado como um círculo pelo arquiteto Oscar Niemeyer – acaba de inaugurar a exposição Baía de Guanabara: Águas e Vidas Escondidas, incluindo a exibição do filme-instalação Ten Thousand Waves, de Isaac Julien, inspirado na história da Baía Morecambe, no norte da Inglaterra, onde morreram vinte chineses numa tentativa de imigração. Não há lugar melhor do que o MAC para uma exposição sobre as águas da Guanabara, suas vidas e suas mortes. Localizado diante da entrada da baía, entre as duas fortalezas que a protegeram nos séculos XVI e XVII – Santa Cruz, do lado de Niterói, e São João, do lado carioca –, é parte do cenário da baía assim como a baía faz parte do museu, com suas janelas envidraçadas exibindo toda exuberância do que se pode chamar de ponto fundador não apenas do estado do Rio de Janeiro, mas do Brasil como Estado-nação, suas vidas, suas mortes.

Desde que os portugueses aqui aportaram, nestas águas nasce e morre a nossa tradição cultural, política, social e econômica. Mesmo antes de 1808 e da chegada da Corte no cais da Praça XV, era pelo porto que escoavam as riquezas para a colônia, desembarcavam os escravos para o trabalho forçado, se instituíam as igrejas para a catequese. São tombadas pelo Inepac um conjunto de nove capelas construídas de frente para o mar, a maioria em homenagem a diferentes invocações de Nossa Senhora, que formam um conjunto arquitetônico histórico em cidades do fundo da baía, como Caxias, Magé e Guapimirim, um círculo a dominar o território a partir do mar.

Pesca da baleia na Baía de Guanabara, de Leandro Joaquim, séc. XVIII (Coleção do Museu Histórico Nacional, RJ)

Pesca da baleia na Baía de Guanabara, de Leandro Joaquim, séc. XVIII (Coleção do Museu Histórico Nacional, RJ)

Na economia, a contribuição da baía era fornecer óleo de baleia para a iluminação pública, história representada na reprodução da obra Pesca da baleia na Baía de Guanabara, tela de Leandro Joaquim, do século XVIII, cujo original está no Museu Histórico Nacional. No MAC, o quadro é uma instalação acompanhada do som das baleias quando mortas e faz parte da temática de preservação ambiental da exposição, o crime do passado a nos lembrar dos crimes do presente.

A baía acaba de nos dar o ouro na dupla de vela Kahena Kunze e Martine Grael, esta última representante da tradição olímpica da família Grael, cujo trabalho nas águas da antiga colônia de pescadores, em Jurujuba, é também digno de medalha. Apesar de valer ouro, as águas da baía foram se tornando, ao longo das últimas décadas do século XX, a metáfora perfeita para a sujeira e a deterioração política do Estado do Rio de Janeiro. Uma das instalações da exposição do MAC expressa bem o problema: o documentário The discarded, dirigido por Annie Costner e Carla Dauden, compara os dejetos jogados na água com os invisíveis moradores do entorno da baía, que banha favelas como o Complexo da Maré. Na Nova Holanda, um grupo de jovens participou do projeto de uma das obras da exposição, que reúne jovens de Niterói e da Escócia.

Abjetos também são objetos e, ainda que rejeitados, não deixam de se apresentar aos sujeitos. O lixo da baía de Guanabara é formado por objetos abjetos, descartados por sujeitos como se a vida das suas águas não tivesse nenhum valor para a coletividade. Em uma cidade como Niterói – que o curador da exposição e diretor do MAC, Luiz Guilherme Vergara, faz questão de lembrar que significa “águas escondidas” –, a tragédia da Baía de Guanabara está exposta todos os dias. Por suas águas ainda se locomovem milhares de pessoas para o trabalho, mas a tradição de marítima se enfraqueceu, as fábricas de sardinha fecharam, as colônias de pescadores morreram, o surfe e o SUP sobrevivem sob os auspícios da crença nos dados do INEA, que liberou a praia de Icaraí para banho.

Apesar de toda a poluição, da Boa Viagem a Jurujuba, passando por bairros como São Francisco e Charitas, o metro quadrado mais caro da cidade está de frente para a baía. Voltado, portanto, para aquilo que tem valor individual para cada morador que desfruta do privilégio da vista para o mar, e que em algum momento deixou de ter valor comum, a ponto de ser o maior fracasso político do Estado – cujos recursos para a despoluição foram inúmeras vezes desviados – e a maior derrota do chamado legado olímpico.

A política fluminense de certa forma cumpre a mesma trajetória da baía, foi se deteriorando pela sua incapacidade de estabelecer relação com o interesse comum e se voltou, ao longo do tempo, apenas para atender o privilégio individual de quem está no poder político ou econômico. O paradoxo entre não valer nada e valer ouro está o tempo todo presente na exposição do MAC. O mar e a arquitetura se confundem, e a baía é a imensa obra de arte da natureza a nos interrogar não apenas o sentido da arte, mas sobretudo o sentido das vidas perdidas em suas águas. De dentro do salão, a Baía de Guanabara participa das obras, “como se” suas águas também estivessem num museu.

MAC com Baía de Guanabara ao fundo (Carla Rodrigues)

MAC com Baía de Guanabara ao fundo (Carla Rodrigues)

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