Por que o leão ruge

Em cartaz

05.09.16

Em setembro de 2015, durante a visita de Anri Sala ao IMS-RJ em preparação da exposição Anri Sala: o momento presente, foi proposto ao artista que escolhesse um conjunto de quatro filmes, uma carta branca para que ele indicasse obras e cineastas de sua preferência como uma espécie de complemento à exposição. Diante do convite, Sala fez uma contraproposta: ao invés de listar suas influências, sugeriu que fossem exibidos alguns filmes que fizeram parte de seu trabalho Why the lion roars (em português: Por que o leão ruge). No dia 11 de setembro – um dia após a abertura da exposição – serão exibidos em 35 mm três títulos que fazem parte desta obra: Nanook, o esquimó (Nanook of the north, EUA e França, 1922), de Robert Flaherty, Ninotchka (EUA, 1939), de Ernst Lubitsch e Iracema, uma transa amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna (Brasil e Alemanha, 1974).

Cena de Ninotchka (EUA, 1939), de Ernst Lubitsch

Cena de Ninotchka (EUA, 1939), de Ernst Lubitsch

Comissionada pela prefeitura de Paris, Why the lion roars foi montada pela primeira vez no espaço Centquatre-Paris em 2008. Tratava-se de uma obra com projeção audiovisual contínua, composta por uma seleção de 57 filmes, para os quais o artista atribuiu individualmente uma temperatura entre -11 e 45 graus Celsius. Um termômetro instalado do lado de fora do espaço expositivo monitorava a temperatura local; a cada mudança registrada, um mecanismo de edição simultânea interrompia o filme sendo exibido, substituído pelo correspondente à nova temperatura marcada, que por sua vez começava do ponto em que havia parado na interrupção anterior. O leão do título faz referência ao leão que ruge ao apresentar os filmes produzidos pelo estúdio de cinema norte-americano Metro-Goldwyn-Meyer; aqui, o rugido do animal precede a troca de cada obra. Em 2011 foi publicado um livro homônimo documentando esta instalação de 2009: uma série de listas coloridas com o nome dos filmes e respectivas tipologias, onde as cores, que se dissolvem entre si, também correspondem a uma determinada temperatura. Um exemplo desta lista pode ser visto no site www.whythelionroars.net, atualizado diariamente de acordo com o clima em Paris.

Cena de Iracema, uma transa amazônica (Brasil e Alemanha, 1974), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna

Cena de Iracema, uma transa amazônica (Brasil e Alemanha, 1974), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna

Em Why the lion roars, cada estação possui a própria programação: dependendo da quantidade de variações temporais, alguns filmes podem ter exibidos apenas pequenos trechos, enquanto outros, beneficiados pela estabilidade térmica (encontrada sobretudo na parte da noite), podem acabar projetados integralmente. A correspondência entre cada obra e a temperatura atribuída por Sala considera de forma bastante fluida o enredo dos filmes e a relevância do clima em seu desenvolvimento. Em Nanook, o esquimó (-8 °C) a relação entre a obra e a temperatura que lhe foi atribuída é mais evidente. O clima se torna um personagem ao observar especificidades cotidianas que só existem em função das baixas temperaturas. A chegada da primavera amolece a rigidez de Ninotchka (10 °C), a caricatural espiã soviética interpretada por Greta Garbo, que cede aos prazeres do capitalismo em Paris. We have the high ideals but they have the climate (“temos os altos ideais, mas eles têm o clima”), ela diz ao constatar a deserção das andorinhas em direção ao oeste.

Ao partir literalmente do que está fora do campo visual – o termômetro fora do espaço expositivo mede aquilo que nunca vemos – Why the lion roars submete as narrativas de cada filme a ditames climáticos, que em um processo de interferência mútua se aproximam do visível neste trabalho. Ao improvisar com o tempo (além do climático, os múltiplos tempos de cada obra utilizada), Sala explora fissuras e aproximações improváveis entre os filmes através da justaposição de diferentes narrativas, gêneros e linguagens cinematográficas para criar um significado particular a cada vez que se entra no espaço de projeção ou se visualiza o site da obra.

Cena de Nanook, o esquimó (Nanook of the north, EUA e França, 1922), de Robert Flaherty

Cena de Nanook, o esquimó (Nanook of the north, EUA e França, 1922), de Robert Flaherty

Os trabalhos de Sala, nas palavras do próprio artista, propõem ao espectador uma forma de apreensão baseada na experiência sensorial dentro do espaço expositivo. Os conceitos que permeiam cada obra são transmitidos para o espectador através desta experiência, em oposição a mensagens e discursos pré-fabricados. Dentre as várias telas que compõem a exposição em cartaz no IMS-RJ até 20 de novembro, este pequeno programa relaciona estes filmes à obra de Sala, não apenas a Why the lion roars, mas também àquela que busca colocar em conflito a forma habitual de se ver cinema. A sala escura e o anonimato são complementares às novas formas de fruição audiovisual, às narrativas de cada um dos trabalhos expostos e, sobretudo, à narrativa formada por este conjunto em particular, sendo este o conflito que interessa a Sala ao longo de seu próprio percurso artístico.

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