O corpo que resiste

No cinema

02.09.16

Tudo o que aconteceu e ainda está acontecendo em torno de Aquarius – o protesto da equipe em Cannes contra o golpe parlamentar no Brasil, a controvérsia em torno de sua possível seleção para concorrer ao Oscar, o vaivém da classificação etária – condenou o filme de Kleber Mendonça Filho a adquirir, para o bem ou para o mal, uma dimensão política ainda maior do que a já contida em seus 142 minutos.

Tentemos, tanto quanto possível, deixar de lado essa reverberação extrafílmica para nos concentrar naquilo que Aquarius põe na tela.

As primeiras palavras do filme são as do verso inicial da canção “Hoje”, na voz de seu autor, Taiguara: “Hoje trago no corpo as marcas do meu tempo”. É, essencialmente, de um corpo que se tratará ali: do corpo de Clara (Barbara Colen na juventude, Sonia Braga na maturidade), mas também do pequeno edifício Aquarius onde ela mora – corpo estranho na paisagem de arranha-céus da praia de Boa Viagem, em Recife.


Corrosão e resistência

O corpo de uma mulher dentro do corpo de um prédio dentro do corpo de uma cidade. Um organismo humano pode ser corroído por células cancerígenas, um edifício por cupins, uma cidade pela ação deletéria de seus habitantes. É desse processo – e da resistência a ele – que fala, com meios essencialmente cinematográficos, o filme de Kleber Mendonça Filho.

A esta altura já não há quem ignore que a linha central do enredo é o embate entre essa renitente moradora, uma escritora e crítica musical viúva, e a grande construtora que quer pôr abaixo o Aquarius e erigir no lugar um espigão moderno.

Talvez seja inevitável que muitos vejam nessa situação dramática uma metáfora ou alegoria do contexto político brasileiro, em que Clara representaria a resistência da presidente Dilma àqueles que queriam (e conseguiram) afastá-la. Mas é uma leitura redutora, não apenas porque o filme foi concebido bem antes de iniciado o processo de impeachment, mas também porque a meu ver ele não parte de uma ideia geral a ser “ilustrada” cinematograficamente, e sim o contrário, isto é, parte do pequeno, do concreto, do íntimo para o universal. É mais uma metonímia do que propriamente uma metáfora.

Nunca se perde de vista esse enraizamento preciso: um corpo num prédio numa cidade. É a partir daí, dessa pulsação básica, que se pode fazer a interpretação que se desejar. Podemos ver o filme, por exemplo, como um confronto entre o horizontal (a forma do Aquarius, que é mais largo do que alto) e o vertical (as torres “modernas” que o sitiam). O horizontal é o sentido do encontro, da troca, da mistura humana – na praia, no salão de dança, na favela Brasília Teimosa, nas relações todas de Clara. O vertical é o sentido da hierarquia, do mando, do poder – o “vencer na vida”, o “mestrado em business”, o sangue nos olhos do jovem empreiteiro Diego (Humberto Carrão).

Aquarius dialoga, por um lado, com o longa anterior de Kleber Mendonça Filho, O som ao redor, e por outro com a produção cinematográfica pernambucana das últimas décadas. Assim como em O som ao redor, há aqui um conflito dramático básico e profundo que explode no final. Mas com algumas diferenças importantes. O longa anterior era um filme “coral”, destacando alternadamente vários personagens e seus pequenos dramas, enquanto mantinha subterrâneo o embate central, só explicitado no fim. Já Aquarius acompanha de perto o tempo todo sua protagonista, e sabemos praticamente desde o início qual é o seu antagonista e o motivo da disputa. É uma sondagem em profundidade de uma personagem.

Suspense social

Com relação ao cinema recente de seu Estado, Aquarius dá prosseguimento à tendência geral de investigar as relações entre o arcaico e o moderno, ou antes a persistência do arcaico no moderno, em Pernambuco e, por extensão, no Brasil. Mas, à diferença de seus conterrâneos, a abordagem estética e narrativa de Kleber Mendonça Filho, sobretudo nesse seu novo filme, é balizada e informada pelo chamado cinema de gênero, em especial pelo suspense. Embora sem tiros, sem explosões e sem violência física, há muito de thriller nesse filme que alterna habilmente os momentos de relaxamento, afeto e humor com passagens de tensão expectante quase insuportável, para não dizer de terror.

A par dessa desenvoltura narrativa, Aquarius tem dois outros trunfos poderosos: a afinação do elenco e o uso preciso da trilha musical (Gilberto Gil, Taiguara, Roberto Carlos, Maria Bethânia) para estabelecer os marcos temporais e emocionais dos personagens. E a escolha de Sonia Braga foi um grande achado. Altiva, intensa, luminosa, ela é a alma – ou melhor, o corpo – desse filme extraordinário.

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