Uma criança grande demais

Colunistas

01.09.16

Os livros de Robert Walser sempre se materializam nas minhas mãos quando eu menos espero e quando mais preciso deles. Da última vez, foi numa viagem de avião, quando eu já não tinha o que ler. Era um livro de bolso da editora suíça Zoe, que eu esquecera no fundo da mala de mão, com dois textinhos traduzidos pro francês, “L’Étang” (“Der Teich”, “O lago”) e “Félix”. Escritos numa forma híbrida entre o teatro e a prosa (o primeiro deles originalmente no dialeto de Berna), ambos falam de crianças e adolescentes que sentem, refletem e se exprimem com o mesmo vocabulário, os mesmos tiques e os mesmos vícios de adultos escaldados. O encanto dos textos do escritor suíço vem dessas pequenas incongruências.

“O Lago” é o único texto de Walser escrito em dialeto. Há uma razão para isso. É um texto familiar, doméstico, íntimo, que conta a encenação de um suicídio por um menino que quer chamar a atenção da mãe. Nesse caso, a pequena incongruência surge na cena em que, reveladas a impostura e a estratégia do menino, a mãe se fecha com ele no quarto não para repreendê-lo mas, ao contrário, para pedir perdão e dizer que o ama: “Eu te falo como a um adulto e no entanto eu te aperto nos meus braços”. Logo ela passará a temer o que podem pensar e dizer os outros, como se tivesse cometido um delito incestuoso. É tudo muito estranho, mas é também um estranhamento minúsculo, no limite do perceptível.

Walser costumava escrever, a lápis, numa caligrafia microscópica, ilegível, o que pretendia manter secreto, protegido do mundo. Passava a limpo apenas o que seria publicado. Depois de sua morte, centenas desses “microgramas” foram decifrados e recopiados por especialistas. “Félix” é um desses textos. Pode ser lido como uma peça de teatro, uma sucessão de cenas e diálogos que acompanham o protagonista da infância até o final de seus anos de formação. E está tudo ali, o amor, as paixões, as frustrações, tudo o que um adulto sente e pensa, só que dito por uma criança que em princípio desconhece a experiência. “É incrível que todas essas ideias me venham à mente, quando eu não passo de uma criança.” É assim que Félix dá início ao texto, falando pela primeira vez, aos quatro anos, antes mesmo de entrar na escola. Sobre o vício da irmã menor pela chupeta, por exemplo, ele sentencia: “Como é possível uma pessoa chegar a tal grau de dependência!?”.

Félix é um alter ego do autor. Há relatos sobre Robert Walser, durante sua passagem por Berlim entre 1905 e 1913, que o comparam a uma criança gigante, inconveniente, que conta piadas que ninguém entende e ri fora de hora. O humor e o drama dos textos de Walser vêm dessa inconveniência. Os personagens estão sempre ligeiramente fora do lugar. É ao mesmo tempo engraçadíssimo e inconsolável.

A dor dessa incompatibilidade acabou condenando Robert Walser ao isolamento de um hospício no interior da Suíça, onde ele passou os últimos anos de vida fazendo passeios solitários (ou com o amigo e admirador Carl Seelig) e escrevendo seus microgramas. Na infância, Félix diz ao pai: “Como é que você pode ser tão duro comigo? Vai acabar com o meu prazer. Era o que eu já estava prevendo”. É como se o autor reclamasse com Deus.

Muito do efeito cômico dessas falas decorre de uma extraordinária autoconsciência, típica de um adulto auto-reflexivo que tivesse passado por anos de análise ou, alternativamente, como no caso de Walser, sofrido um longo processo de inadequação, a observar o mundo de fora e de longe. Um sujeito que sonha com o amor que vê nos outros e ao qual uma série de frustrações termina por permitir uma visão irônica do narcisismo: “Realmente, não há nada mais divertido do que ser interessante”, diz a amiguinha da irmã do protagonista sobre a atenção que o menino lhe dispensa.

Lá pelas tantas, Félix vai visitar a tia. Segue-se um diálogo absurdo, cuja loucura  aumenta na proporção da sua formalidade. “Meu pai julgou por bem me enviar para transmitir-lhe votos de felicidade por ocasião do seu aniversário”. E a tia: “Desculpe interrompê-lo, mas que é que você entende por felicidade?”.

Na hora de se despedir, o menino desabafa: “Preciso ir embora. Estão me esperando lá fora. É alguém cuja companhia me é tão preciosa que sofro a cada minuto longe dele. (…) Preciso desconfiar da minha necessidade de ficar junto dele. (…) Ele poderia perceber e isso o tornaria mais forte. (…) Será que ele ama a si mesmo e que isso lhe é suficiente? Será que a estima que nutre por si mesmo o satisfaz? Com que inocência ele me dá as costas! (…) Sua calma me faz perder a minha, vê-lo em perfeita harmonia consigo mesmo me deixa furioso contra mim mesmo. Ele não parece se sentir só, mesmo estando completamente só”.

A consciência que o menino tem do narcisismo do amigo, como se estivesse imune a essa cegueira, condenado a vê-la na indiferença dos outros, é a expressão da inadequação de um homem rejeitado por um mundo onde ele cabe cada vez menos, conforme tenta se agarrar aos afetos e à amizade, como uma criança grande demais. A mesma inadequação fez de Walser esse grande escritor.

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