Vim a Portugal falar de João César Monteiro (1939-2003). O diretor será homenageado no Festival de Cinema de Lisboa e Estoril. Passei o último mês revendo seus filmes. Há coisas incríveis neles, tratadas com um humor que, de tão inteligente, faz rir de felicidade. Me pediram que escolhesse um de seus filmes para comentar depois da projeção. E aos poucos, Branca de Neve (2000), o polêmico “filme cego”, adaptação praticamente sem imagens do texto homônimo de Robert Walser, foi se impondo como um buraco negro que ao mesmo tempo engole e explica tudo.
Cena de Branca de Neve (2000), de João César Monteiro
Branca de Neve serve de coda para a obra de João César Monteiro. Em uma entrevista incluída entre os extras de sua obra reunida em DVDs, o diretor justifica a escolha do texto pela admiração que sentia pelo autor suíço. E quando lhe pedem para definir o filme (que narra a história de Branca de Neve a partir do momento onde o conto de fadas termina), o cineasta diz que é sobre “o fracasso do ser individual contra o ser social”.
A frase não explica muita coisa. Ou melhor, ela mais confunde e esconde. Branca de Neve realmente acorda para confrontar a madrasta com o crime do qual foi vítima (isso já acontecia no conto), mas aqui, ao contrário do conto, ela termina sendo obrigada a se resignar à versão (em princípio, hipócrita) que a Rainha lhe apresenta como condição para que todos voltem à paz do convívio social.
Na entrevista, João Cesar Monteiro compara Branca de Neve a Susana, a personagem de Buñuel, que sai da cadeia para infligir seu poder de perversão à ordem familiar burguesa. A Branca de Neve do texto de Walser é de fato uma personagem perversa. Mas as consequências dessa perversão vão muito além da subversão da ordem burguesa – e talvez até lhe sejam de algum auxílio.
João César Monteiro decidiu filmar o texto de Walser logo depois de completar sua obra-prima, a trilogia de João de Deus, personagem encarnado pelo próprio cineasta como uma caricatura do perverso (coleciona pelos pubianos femininos em um “livro de pensamentos”, ao mesmo tempo que se preocupa obcecadamente com a higiene das empregadas da sorveteria que dirige; propõe banhos de leite à jovem diarista que vem trabalhar em sua casa etc.) . Branca de Neve é o arremate que faltava à trilogia (formada por Recordações da Casa Amarela, de 1989; A Comédia de Deus, de 1995, e As Bodas de Deus, de 1998) para fazer compreender de uma vez por todas, e por oposição, quem é João de Deus.
Pode ser que a um português a obsessão de João César Monteiro por Deus pareça normal. A um estrangeiro, entretanto, essa obsessão ganha imediatamente um caráter extraordinário. O cineasta criou para si um alter ego que é a caricatura do perverso e que se chama João de Deus. A piada aí é dupla. Quem é o perverso, se tomarmos como modelo máximo o Marquês de Sade, a quem o diretor agradece em algum de seus filmes, talvez no próprio Branca de Neve?
O perverso quer pôr sua lei no lugar da lei de Deus. Compete com Deus, porque reconhece que há um problema básico, uma hipocrisia, na lei que os homens atribuem a Deus. Se Deus criou os instintos, se os instintos são naturais como todas as criações divinas e se os instintos contradizem o que a lei de Deus nos propõe, é porque essa lei é falsa. A lei que o perverso propõe no lugar da lei de Deus é a lei dos instintos, que é a única coisa na qual se pode confiar como sendo realmente divina e verdadeira, já que os preceitos divinos foram redigidos pelos homens e os instintos foram criados por Deus.
O que o perverso está dizendo é que ele está mais próximo de Deus do que dos homens, a verdade está com ele, pois só obedece aos seus instintos. Acontece que, como na lei de Deus, também há uma contradição de base na lei dos instintos e é essa contradição que a obra de Sade escancara, de modo a tornar-se trágica: se o meu instinto diz que devo seguir meu prazer para além de todos os limites, até o assassinato, por exemplo, também tenho que pressupor que os outros ao meu redor, seguindo seus próprios instintos, também poderão me matar por prazer.
Ou seja, se for para seguir apenas os instintos, tenho que pressupor que posso ser assassinado a qualquer instante pelo prazer do outro, o que diminui bastante as minhas chances de fruição do meu próprio prazer assassino. Como resolver essa questão? Eliminando o outro. Ou seja, no mundo do meu prazer e da minha lei, o outro não existe propriamente em pé de igualdade comigo; o outro tem de ser reduzido a objeto do meu desejo e do meu gozo. O real passa a ser então uma fantasia que o perverso põe no lugar da fantasia de Deus. A fantasia de Deus é passar-se pelo real (a lei de Deus quer confundir Deus com o real, quer dar uma ordem ao real). O perverso se coloca no lugar de Deus, pondo uma fantasia no lugar da outra.
A Branca de Neve de Walser é uma perversa narcisista. Portugal nunca foi uma terra fértil para a psicanálise (talvez pela própria presença de Deus na vida cotidiana e social), mas é difícil negar a influência de Freud, ainda que seja implícita, na obra de quem escrevia em alemão no início do século vinte. Branca de Neve aparece em 1901, mesmo ano em que Freud publica A Psicopatologia da Vida Cotidiana, depois de A Interpretação dos Sonhos no ano anterior.
No texto de Walser, Branca de Neve se irrita com o príncipe que a tirou do sono eterno onde sua beleza estava exposta, num caixão de vidro, ao encanto de todos os que a vissem e a trouxe de volta a esse mundo impuro, de contradições e ódios, para confrontar o ciúme da Rainha e a volubilidade dos sentimentos e dos desejos (o próprio príncipe a cada hora está interessado em uma mulher diferente, oscilando entre Branca de Neve e a Rainha).
O cineasta português João César Monteiro (1939-2003)
Quando Branca de Neve joga na cara da Rainha que entre os anões não havia ódio, a Rainha lhe responde sabiamente: “Onde não há ódio, tampouco pode haver amor”, o que desmonta a fantasia narcisista da protagonista. O que a Rainha lhe propõe não é adaptar-se às normas hipócritas do convívio social, como pode parecer à primeira vista, mas sair de sua fantasia narcisista (do mundo dos anões e do sono eterno no caixão de vidro) e encarar as contradições, as ambiguidades e os riscos do real, encarar o outro.
O perverso não vê o outro. A Rainha, ao contrário, quando olha no espelho, em busca da confirmação de sua beleza, vê a beleza da outra, toma consciência de que a beleza de Branca de Neve é maior do que a sua. Ela vê o real no espelho. E quando Branca de Neve vem lhe jogar na cara o crime que ela cometeu, a Rainha tenta simplesmente lhe explicar que assim são os homens (nada a ver com essa fantasia de anões que a bajulavam e a adoravam, cada um representando um sentimento estanque que nunca se fundia ou se misturava com outro, na contradição de uma pessoa completa e real). A Rainha lhe diz que a mandou matar, sim, mas que isso tampouco a impede de amá-la, o que é incompreensível para a cabecinha narcisista de Branca de Neve.
João César Monteiro brinca de perverso, mas está obviamente muito interessado no outro, no prazer do outro, no gozo do outro. Seu problema é com Deus. E como no fundo não é perverso, não é a sua fantasia que ele quer pôr no lugar da fantasia de Deus. Quer, antes, pôr o real de volta no seu lugar, como a Rainha, no lugar que lhe cabe e que foi usurpado por uma fantasia criada pelos homens em nome de Deus. Sabe que não pode abolir o real com uma fantasia e mostra isso o tempo inteiro, pelos contratempos que sofre João de Deus nas mãos dos outros, à mercê da sorte que o surpreende e o contradiz conforme ele vai tentando construir e reconstruir seu mundo, em vão.
Por que João César Monteiro quis filmar esse texto de Walser? E por que quis filmá-lo justamente depois da trilogia onde esse embate com Deus está mais evidente? Não são poucos os pontos de contato entre Walser e João de Deus. Para começar, há a teimosia de fazer um sonho de infância sobreviver num mundo que não o acolhe. Como João de Deus, o escritor suíço não cessa de ser contrariado pelo real. E não é fortuito que ambos tenham terminado recolhidos em hospícios.
No início do filme, um letreiro anuncia que o espetáculo agora é o espectador. A tela opaca, negra, quebra o jogo especular que o espectador estabelecia com a imagem e o remete de volta à sala, ao mundo, ao real. A tela opaca, sem imagens, o obriga a olhar para o lado. O espetáculo já não existe como transparência e o espectador é obrigado a olhar para a sala, para o outro. A tela recusa a identificação e a absorção da fantasia narcisista.
Nem Deus nem o perverso nem o narcisista têm a capacidade de rir de si mesmos. João César Monteiro está rindo de si o tempo inteiro. Por intermédio da figura de João de Deus, o diretor avacalha tanto o lugar de Deus quanto o do perverso. Só vale a pena viver num mundo onde há riscos. E nem Deus nem o perverso podem suportar a ideia de risco ou de contradição. Nem um nem outro podem ser contrariados. Ambos são medidas contra o risco, contra o inesperado, contra o real, contra a morte. Exposta e conservada no sono eterno de seu caixão de vidro, para o fascínio e o encantamento de quem a visse, Branca de Neve não morreria nunca.
Em As Bodas de Deus, um príncipe árabe que João de Deus desafia no jogo lhe diz: “Quem joga contra Deus está condenado a perder sem remissão”. Ao que João de Deus responde com mais uma de suas tantas máximas populares: “Quem não arrisca não petisca”. Fica a dica.