Passeios sem Robert Walser

Colunistas

11.07.11

Basta eu não conseguir escrever para começar a pensar em Robert Walser, o escritor que, internado num hospício, disse a Carl Seelig, seu executor testamentário e autor do magnífico Passeios com Robert Walser: “Não estou aqui para escrever, mas para ser louco”. Walser passou seus últimos 27 anos no hospício. E, durante esse tempo, os textos que escreveu numa letra minúscula e ilegível foram minguando até desaparecer completamente.

Não tenho fetiche por escritores (não costumo visitar seus túmulos nem suas casas, embora a de Dostoiévski em São Petersburgo tenha me deixado muito impressionado). Decidi ir atrás dos traços de Walser em Berlim (onde ele viveu entre 1907 e 1913, depois de ter frequentado uma escola para criados, e quando escreveu e publicou a sua obra-prima recém-lançada no Brasil, Jakob von Gunten) só pra me distrair do meu próprio bloqueio. Achei que um pouco de fetichismo pudesse me ajudar a superar a inércia.

Segui o caminho mais fácil e mais rápido – e nem sempre menos duvidoso, como tudo o que é mais fácil e mais rápido: recorri ao Google. Walser pode ter sofrido da falta de reconhecimento em vida, mas hoje está na ponta da língua de qualquer aspirante a escritor, blogueiro ou estudante de letras quando tem que citar os gênios da literatura do século vinte. E, de fato, é incrível. Todos os endereços do escritor em Berlim estão lá, no alto da página inicial do Google, mas nada garante que sejam verdadeiros. Nada impede que um mitômano iconoclasta esteja pregando uma peça nos fãs (o que seria até bastante saudável e engraçado). Pois, como vou acabar descobrindo, e a crer na veracidade das informações, os lugares onde viveu o escritor em Berlim sumiram do mapa, não passam de abstração, não são mais do que alfinetes espetados em endereços virtuais. É compreensível e natural que tudo tenha desaparecido desde então, ainda mais numa cidade que nesse meio-tempo foi bombardeada e reconstruída. Mas a radicalidade do desaparecimento dos lugares por onde Walser passou, em sintonia com a autoextinção da sua obra, oscila entre o absurdo e o cômico.

Os seis endereços ficam na parte ocidental da cidade, de modo que pude visitá-los de bicicleta em poucas horas. Muitos prédios de Berlim têm placas com o nome de moradores históricos. E eu esperava mesmo encontrar alguma referência a Walser nos edifícios onde ele morou. Se ainda existissem, é claro. A única placa fica escondida na entrada de um estacionamento, ao lado de um cabeleireiro, no número 70 da Kaiser-Friedrich Strasse, onde Robert viveu com o irmão Karl, cenógrafo de teatro, enquanto escrevia Os Irmãos Tanner (1907) e O Ajudante (1908). O prédio de quatro andares é recente. No térreo, além do cabeleireiro, funcionam uma oficina mecânica e uma borracharia. A placa dissimulada numa parede lateral, embaixo do sinal de estacionamento, ao lado da foto de uma mulher com cabelos sedosos na vitrine do cabeleireiro, informa que os irmãos Walser viveram no edifício que havia ali na primeira década do século. É a coisa mais estapafúrdia.

Entre 1907 e 1908, ainda escrevendo O ajudante, Walser alugou um quarto no número 141 da Wilmersdorfer Strasse, onde hoje fica uma igreja em obras. Em 1908, enquanto Karl estava no Japão, Robert foi morar no apartamento do irmão, na Schoneberger Ufer 40, onde já não há nenhum prédio, só uma avenida larga. Em maio de 1909, quando Jakob von Gunten foi publicado, o escritor vivia no número 96 da Kaiserdamm. O número tampouco existe. O lugar onde possivelmente ficava o prédio agora é cortado por uma autoestrada. Tento me certificar do endereço no Google Maps do meu celular (devia ter feito isso antes de sair de casa) e a foto correspondente ao número do edifício mostra carros passando em alta velocidade embaixo do viaduto onde estou.

Na primavera de 1910, Walser ficou algumas semanas no apartamento do irmão, no número 29 da Ku’damm. De todos, é o único prédio que continua em pé ou que foi reconstruído tal como o original, no estilo berlinense típico do início do século vinte. Ao lado da porta, há uma placa com o nome de uma pintora que manteve ali seu ateliê entre 1919 e 1976. Mas nenhuma referência à passagem dos irmãos Walser.

Resta o último endereço, Spandauer Berg 1, onde o escritor teria alugado um quarto entre o final de 1910 e sua volta definitiva para a Suíça, em 1913. Durante esse período, ao que parece, Walser não conseguiu escrever nada além de artigos de jornal. É, dos seis endereços berlinenses, o mais excêntrico (em todos os sentidos). Fica perto do estádio construído por Hitler para as Olimpíadas de 1936, no limite ocidental da cidade.

Conforme me aproximo, começo a rir. Só pode ser mesmo uma piada. É como se o próprio Walser tivesse escrito o roteiro frustrado do meu périplo fetichista cem anos depois de ele ter vivido ali. Toda a área em volta de um pequeno parque que no tempo de Walser pode ter sido pontuada por mansões senhoriais está tomada por um desses loteamentos ou associações (Kolonien ou Schrebergärten) de jardinzinhos e casinhas que nos meus primeiros dias em Berlim eu confundi com barracos caprichosos e favelas floridas ao longo dos trilhos do trem. No lugar onde Walser possivelmente morou, há agora uma casa de bonecas e um canteiro de flores cercado de pequenas estátuas de anões e deusas gregas. Uma placa na entrada da colônia estabelecida em 1919 faz um alerta a estranhos como eu: “Rua privativa, entrada permitida somente entre 7h e 13h e entre 15h e 20h. O risco é seu”. São duas da tarde. Entro assim mesmo.

Enquanto estou fotografando com o meu celular um dos jardinzinhos esmerados, me dou conta de que sou observado. O vizinho de óculos escuros e a mulher com as mãos na cintura interromperam o que estavam fazendo e me encaram como cães de guarda, com os pescoços esticados acima das folhagens. Saio de fininho (e volto pra casa e pro meu bloqueio), antes de ser escorraçado como um personagem de Walser, empregado doméstico numa mansão senhorial.

* Na imagem da home que ilustra este post: retrato do escritor Robert Walser (imagem de divulgação da editora Companhia das Letras)

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