O valor do riso

Literatura

26.10.17

1.

No início da década de 1990, fui forçada a comparecer a uma festinha do colégio vestida de zebra. Eu tinha cinco anos e minha mãe, que não é sádica, apenas peculiar, alegou que não havia encontrado uma fantasia mais adequada, ou menos inadequada. O salão estava tomado por fadas, princesas e bailarinas. A única que destoava das outras meninas era eu. Imagino minha figura desmotivada, costas curvadas, sapatos ortopédicos denunciando quem estava por trás do focinho preto e branco, e a cena me faz rir. Naquele dia, no entanto, a consciência da inadequação me deixou arrasada. Se eu houvesse escolhido a fantasia, talvez a história fosse outra. Mas optar por uma fantasia de zebra aos cinco anos de idade exigiria uma compreensão dos estereótipos, e das possibilidades de rejeitá-los, que não estava ao meu alcance. Como quase toda criança, eu desejava pertencer a um grupo. Naquele momento, a despeito do meu senso de humor singular, dos meus versinhos sarcásticos, das tiradas que faziam minha família rir, entendi que não havia tragédia maior do que ficar ali parada vestida de zebra.

2.

Em um pequeno texto chamado “O valor do riso”, Virginia Woolf dá o nome de humor ao meio-termo entre a tragédia, que “retratava os homens como maiores do que eles são”, e a comédia, que “representava as fraquezas da natureza humana”. Woolf procura diferenciar o humor da comédia, mas a explicação é breve e confusa. A distinção foi melhor apresentada por Julio Cortázar durante as conferências de Berkeley em 1980, posteriormente reunidas em Aulas de literatura. A diferença entre os dois registros está, diz ele, no impacto e na duração. A comédia tem um alcance limitado, e não provoca nada além de um riso pontual. Já o humor “é cheio de um sentido que vai muitíssimo além da piada ou da situação em si”. Acho a distinção exata. Tanto a comédia quanto o humor, entendendo que há gradações em um e em outro, me interessam aqui.

3.

“O humor, como a nós foi dito, foi negado às mulheres. Trágicas ou cômicas elas podem ser, mas a mistura específica que constitui um humorista é para encontrar-se somente em homens”, escreve Virginia Woolf. “O valor do riso” foi escrito e publicado em 1905. Com o ingresso das mulheres nas universidades, é possível que a equação tenha se invertido. Tenho a impressão de que as mulheres são, hoje, menos encorajadas a performar os trejeitos, gestos, discursos e ações que lembram remotamente a comédia.

A escritora Virginia Woolf, que publicou, em 1905, o texto “O valor do riso”

4.

“Want to raise an empowered girl? Then let her be funny”, diz o título de um artigo publicado no Washington Post. Não sou a maior entusiasta do termo empoderada (empowered), que sempre me pareceu, e sobretudo em língua portuguesa, excessivamente vago. O que é ser empoderada? Como posso me tornar empoderada? Partimos do princípio de que o empoderamento permite a uma mulher conceder poder a si mesma, mas não vamos mais longe do que isso. Não temos uma ideia clara das formas que esse poder assume, nem de quais maneiras e a partir de quais recursos é possível criá-lo, e não sabemos, é claro, que desafios vamos ter de enfrentar. O artigo do Washington Post, embora o empregue no próprio título, dá uma boa pista de como escapar de um termo estático e vazio. De acordo com o texto, é importante que os pais permitam que uma menina seja engraçada se quiserem que ela seja assertiva, confiante e inteligente — estes são alguns dos adjetivos espremidos, como sardinhas em lata, na palavra empoderada.

5.

Assinado por Ellen McCarthy, o texto diz que as meninas devem ter liberdade para fazer piadas e para rir alto e abertamente. Todo humor parte, porém, de uma ruptura. Em certas ocasiões, ele envolve algum risco. Para Robert Provine, neurocientista ligado à Universidade de Maryland, as mulheres seriam punidas mais duramente por violar certas normas e condutas sociais, algo que a natureza do humor pressupõe. Fazer humor é, no entanto, participar ativamente da vida. Fazer humor envolve sair do lugar subalterno que nos foi destinado. Se antes nos contentávamos em observar, fazer o outro rir ou corar graças a um comentário a partir do que observamos é tomar não apenas a palavra, mas uma posição. Não existe humor neutro. Humor é perceber, descartar, escolher, mirar, demolir. Negar a prática do humor às mulheres é negar sua humanidade. “O riso é a expressão do espírito cômico que existe dentro de nós, e o espírito cômico se interessa pelas esquisitices e excentricidades e desvios do padrão reconhecido”, diz Woolf.

6.

O humor exige liberdade para fazer escolhas e tomar posições. Não há humor com pudor, ainda que seja o pudor de destoar socialmente, nem com neutralidade, nem com posições fixas, sem perspectiva de se alterarem. Para fazer humor é preciso escapar de certos papéis. Pense no mordomo de Kazuo Ishiguro no início de Os vestígios do dia, que não conseguia compreender ou corresponder ao senso de humor do patrão. A disparidade se devia não apenas à diferença entre o humor inglês (do mordomo) e o norte-americano (do patrão), mas à posição subalterna que impedia o pleno reconhecimento do outro.

7.

As mulheres não têm obrigação de ser engraçadas, diz o senso comum, já que não precisam se esforçar para conquistar ninguém. No caso dos homens, o humor seria um atrativo a mais, ou o único, que ajudaria um sujeito a se dar bem com um alvo em potencial. Reduzir o humor e a comédia a um mero jogo de sedução não deixa de ser, por si só, engraçado.

8.

De acordo com o senso comum, uma mulher com pendor para a comédia ou o humor quer chamar a atenção. Um homem com pendor para a comédia ou o humor é um sujeito amistoso, charmoso, carismático ou sedutor que gosta de fazer os outros rirem. No melhor dos casos, a mulher é narcisista, carente ou ambos. No pior, é uma safada exibicionista. Ou uma louca.

9.

Lembro de ter sido uma criança engraçada que ocasionalmente deixava os adultos um tanto perplexos. Imagino que o contraste entre a timidez que eu exibia à primeira vista e meu comportamento real, que emergia aos poucos e incluía uma série de piadas e trocadilhos infames, pudesse chocar. Meu grande defeito, no entanto, era ser uma menina. Passei muito tempo sem poder me apropriar do repertório que me interessava — sem poder me apropriar por completo do insólito, do pastelão, do palavrão, do puro e simples mau gosto. Eu pegava o que estava ao meu alcance, algo que, para alguns, já era excessivo. “Onde está aquela sua amiga bagaceira?”, perguntou a avó de uma colega certa vez, sem perceber que eu, o objeto da gentileza, estava logo ali ao lado. Vinte anos atrás, ser uma menina engraçada era ser a bagaceira da turma. (Tenho um carinho especial pelo adjetivo “bagaceira” até hoje.) Já um garoto é só um garoto. Um garoto pode ser endiabrado, travesso ou desbocado. É coisa de garoto.

10.

Nem sempre, ou dificilmente, o humor e a comédia revelam nosso melhor ângulo. Para o bem e para o mal, a exposição e o registro exigidos podem distorcer uma imagem. Nesse sentido, qualquer mulher que faça rir, seja o qual for o formato e o conteúdo, está quebrando barreiras. Penso em Claudia Tajes em Partes íntimas, um livro de crônicas. Penso em Tati Bernardi em Depois a louca sou eu. De inspiração autobiográfica, catalogado como Crônicas e Relatos pessoais — ainda que a escrita admita, e até pressuponha, o exagero e a imaginação — o livro de Tati Bernardi contém descrições ao mesmo tempo engraçadas e cruas de episódios de ansiedade, depressão e pânico. Em um dos relatos, uma moça tem uma crise em um avião. “Me apresentei: ‘sei exatamente que merda é essa’. Apresentei o Rivotril: ‘você vai melhorar em poucos minutos’. Ela disse que não tomava nada ‘que os outros lhe dessem’, e sem receita. Ainda era grossa, a maluca”, diz o texto. Em outro, a autora retorna à época em que tentou arranjar uma amiga no colégio. “Desde que entrei naquela escola, aos sete anos, eu sonhava em ter uma amiga que me entendesse. Alguém a quem pudesse falar coisas como ‘você acorda com medo, chora no banho, pensa em vomitar, unha um pouco a palma das mãos e pergunta como será a vida daqui a quarenta anos se você continuar assim?’”, escreve. Uma mulher que despe as autodefesas para fazer alguém rir pode ou não alcançar o objetivo inicial, mas dificilmente é inofensiva. No limite, o humor e a comédia me parecem um dos poucos recursos de empoderamento, no sentido de atribuição de poder, que estão ao nosso alcance individualmente. É paradoxal, portanto, que partam de certa vulnerabilidade. Todo humor ou comédia admitem, no entanto, uma série de respostas. Quando viram um livro, como no caso de Claudia Tajes e Tati Bernardi, um filme, uma peça ou o que for, estão sujeitos às reações e aos comentários do público e da crítica. É possível gostar ou não. Mas jamais se pode dizer que a iniciativa não é importante.

11.

Uma crítica comum a esse tipo de humor é que ele seria prejudicial à causa das mulheres. Não se pode falar assim, onde já se viu, o que vão pensar de nós, não podemos ser retratadas dessa maneira, não somos loucas. É muito difícil fazer humor ou comédia sem escancarar limitações e imperfeições, fendas ou rachaduras, e sem apontar o que está quebrado, deslocado, torto. É isso, de novo, o que nos humaniza. Não queremos a devoção, que nos obriga a adotar uma máscara frágil e dócil, e não queremos a humilhação da inferioridade, que faz com que nossos corpos e nossas vidas não tenham valor algum.

12.

É preciso cautela ao pensar o humor dentro do discurso feminista. Ele é um aliado importante quando se trata de abalar a noção de superioridade masculina, ou de desinflar egos ao mesmo tempo frágeis e imensos. Também pode render boas piadas com chavões irritantes, como no caso da Central Feminista. Ele pode ser, ainda, o principal registro de livros, peças, filmes ou manifestos de cunho feminista. Mas nem sempre é fácil, possível ou desejável empregar o humor como ferramenta da militância — ou porque certas pautas não deixam nenhum espaço para o riso, ou porque o cansaço tomou conta, e não há disposição para a comicidade quando se tem de repetir a mesma coisa vezes e vezes e vezes sem conta. Mas todo humor em uma mulher, qualquer que seja o tema e o viés, é sempre (e às vezes à revelia) uma forma de resistência e uma ferramenta ou ação de mudança. É um recado e um convite.

13.

Com roteiro e direção de Terence Davies, A Quiet Passion, de 2016, retrata a vida da poeta Emily Dickinson. A julgar pelas cartas consultadas para a produção do filme, e ao contrário do que se costuma associar à figura reclusa, Dickinson era uma mulher que conhecia a importância do humor. Vryling Buffum, a amiga de Dickinson cuja ironia não poupava os homens, a igreja e a frivolidade do círculo social frequentado por elas, também o tinha em alta conta. Segundo Cortázar, o humor “está passando continuamente a foice por baixo de todos os pedestais, de todos os pedantismos, de todas as palavras com muitas maiúsculas”. É exatamente o caso da afiada Buffum. Não à toa, ela é retratada como uma mulher impetuosa e independente. Graças ao filme, penso que a exposição exigida pelo humor — uma exibição de ideias, de posições, de opiniões, de lealdades —, qualquer que seja a circunstância em que ele emerja, é equivalente à exposição exigida pela escrita.

14.

“O humor pode ser um grande destruidor, mas ao destruir constrói”, diz Cortázar. Na literatura, segundo ele, o humor ajuda a revelar a verdadeira dimensão daquilo que antes nos parecia grandioso ou imponente. Escrever com humor, portanto, na medida em que pressupõe o ajuste de perspectivas — na medida em que exige o domínio da arte de diminuir ou desnudar ou vestir ou empregar uma lente de aumento —, é muito difícil. E quanto às mulheres que o utilizaram em seus livros? O humor tipicamente inglês de Jane Austen, sutil e ocasional, nem sempre é citado ou valorizado. Das autoras contemporâneas que não abrem mão do humor, gosto sobretudo de Ali Smith, Lydia Davis e Lucia Berlin. Coincidentemente ou não, as três triunfaram com narrativas curtas — ainda que Ali Smith tenha publicado pelo menos dois romances de qualidade. Alice Munro, cuja carreira foi dedicada aos contos, acolheu o humor com o mesmo entusiasmo, ainda que com uma frequência menor.

15.

Se a decisão de separar comédia e humor faz algum sentido, as quatro autoras citadas aqui não apenas se afastam da primeira como trabalham o segundo com habilidade e paciência de ourives. Ali Smith é menos sutil, mas nem por isso menos brilhante. Seu humor é trocadilhesco (o tradutor Caetano Galindo tem de deslindar um bom número de jogos de palavras) e tem algo de matreiro. Berlin não teme coisa alguma, muito menos a possibilidade de que, aos olhos do leitor menos atento, não soe como humor o que de fato é humor. A duplicidade, diga-se de passagem, é uma das grandes sacadas dos contos de Manual da Faxineira. “Como na vida, a comédia pode acontecer no meio da tragédia”, destaca Lydia Davis sobre a escrita de Berlin. A própria Davis faz humor como se conversasse em voz baixa com o vizinho de mesa entre uma taça de vinho e outra. A graça de Tipos de perturbação e Nem vem é a atenção (em geral) obsessiva e metódica aos detalhes que poderiam parecer insignificantes: os percalços da rotina, as manias absurdas, os episódios mais corriqueiros, os objetos ordinários. A escrita de Davis se aproxima da definição de Cortázar de um jeito quase literal, assim como a de Berlin. Munro, a que usa o humor com menos regularidade, é a mais polivalente das quatro. Ora corta fatias finíssimas de ironia com uma navalha — uma navalha em cuja lâmina está escrito, se você prestar bem atenção, “eu sou um gênio” — ora aplica o humor como uma compressa que alivia dores e desconfortos. Munro também sabe disfarçar a graça, tornando possível intui-la, mas não localizá-la com precisão.

16.

No texto em que evidencia o valor do riso, Virginia Woolf observa que a falta de instrução de mulheres e crianças — ou seja, sua ingenuidade — favoreceria aquela sorte de gracejos com poder de desarmar convenções e afetações. A passagem de Woolf, que felizmente já se tornou anacrônica, me fez lembrar das crianças excessivamente perspicazes da literatura de Ali Smith. Brooke, de Suíte em quatro movimentos, é “uma criança sobrenaturalmente articulada”. Graças à inteligência e à capacidade de observação, todas têm uma curiosidade insaciável pelo mundo. As crianças de Ali Smith dizem coisas desconcertantes, mas ao mesmo tempo — sobretudo pelo descompasso entre quem enuncia e o conteúdo da frase — engraçadas. Nos contos e romances, elas surgem em contraste com adultos convencionais, que não querem arruinar o penteado nem sujar a casa. A tensão dá lugar às muitas perguntas que caracterizam um livro de Ali Smith, boa parte delas feitas por crianças, e sempre de maneira cômica. São, no geral, questões banais vistas por um ângulo inusitado. O próprio humor de Smith é inusitado, beirando o inclassificável. Lendo algumas entrevistas com a autora, fiquei chocada ao constatar que nenhum dos entrevistadores perguntou a ela sobre o humor.

Cena do filme Toni Erdmann: humor para encarnar humanidade perdida

17.

Em Toni Erdmann, escrito e dirigido pela alemã Maren Ade, um pai tenta ajudar a filha, já adulta, a pôr certas coisas em perspectiva. Com o auxílio de uma dentadura irregular, de uma peruca em mau estado e de um terno amarfanhado de tecido cintilante, Winfried Conradi — um professor de música de aspecto comum — vira Toni Erdmann. Fingindo ser um life coach, exibindo um comportamento excêntrico, ele transita pelo meio corporativo ao qual a filha, Ines, pertence. Ela reconhece o pai, mas age como se o visse pela primeira vez. Para os colegas de Ines, Erdmann é apenas um maluco. Ele, por sua vez, se comunica com a filha por meio de alusões e indiretas que apenas ela é capaz de compreender. Assim, ao mesmo tempo em que torna necessária a dramatização, a presença de estranhos possibilita uma comunicação que pai e filha não conseguiram estabelecer de modo privado. Funciona. Através do personagem bem-humorado, Winfried ajuda Ines a descobrir a real dimensão daquilo que a tiranizava. A importância exagerada que ela atribuía à carreira desmorona, junto com boa parte das defesas, diante da lição. Na última cena, Ines põe a dentadura de Toni Erdmann, além de um chapéu estranho. Deformada pelos acessórios, ela parece encarnar aquela humanidade que havia perdido, à qual Toni Erdmann a reconduziu.

18.

O humor não é redentor no sentido mais extremo do termo. O humor tampouco nos isenta de responsabilidades. Sem ele, no entanto, a vida cotidiana seria inviável. Lydia Davis e Lucia Berlin sabem disso. “Tão logo nos esquecemos de rir, vemos as coisas fora de proporção e perdemos o senso de realidade”, escreve Virginia Woolf, certeira. É difícil convencer uma criança privilegiada de cinco anos de que seu problema não é de fato um problema, e de que há coisas muito piores do que ser a zebra em um reino de fadas e princesas. Eu não tinha, é claro, nenhum senso de proporção. Tivesse eu toda a dimensão do valor do riso e as coisas teriam sido diferentes. Mas eu não era, é evidente, uma das crianças sagazes de Ali Smith. Mais de vinte anos depois, enfim, é possível supor que algumas circunstâncias mudaram. Por pior que a palavra soe, já é possível falar em empoderamento. É possível desejar que mais meninas andem por aí vestidas de zebra ou de tubarão-baleia ou de bactéria ou de Van Gogh, ao mesmo tempo em que enxergam nisso, na cena da qual a comédia, que se alimenta do insólito e da ruptura, não está ausente, uma quebra importante de padrões. A representação, a fantasia, a imitação, nada disso é estranho ao riso. E, como sabe Winfried Conradi, um personagem cômico, com seus trejeitos e figurinos, tem muito a ensinar sobre o valor do humor e da comédia, sobre proporção e equilíbrio. Por fim, ver nessa disparidade entre mulheres e homens algo que deve ser ajustado com urgência é o mesmo que saber que a regulagem pode começar pela perspectiva. Fazer rir, e rir de si mesma, tomar para si toda a dimensão do riso, é pôr as coisas em seus devidos lugares e as mudanças em marcha. Que alguns homens não vejam graça nenhuma nisso não é problema nosso.

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