Pouco antes do fim

serrote

03.05.11

Encontro entre jornalistas e escritores tendem a ser tão interessantes quanto o de médicos com seus pacientes – embora eu não arrisque quem é quem nesta comparação. O fato é que, independentemente de uma entrevista “render” ou não, a proximidade com gente que se admira nem sempre é um momento especial. Em 2001 tornou-se inesquecível para mim um jantar, no Rio, com Ernesto Sábato. E não exatamente pelos motivos mais evidentes.

Naquele mês de março, o professor Candido Mendes recebia em sua universidade Sábato, Augusto Roa Bastos e Carlos Fuentes para um seminário. Havia homenagens e todo o tipo de protocolo para três dos nomes fundamentais na literatura latino-americana no século passado. No meio da programação aconteceu o jantar em homenagem a Sábato. Éramos, se não me engano, no máximo 15 pessoas em uma sala fechada do Le Saint Honoré, restaurante do falecido hotel Méridien.

Naquela altura, Sábato já parecia ter quase os cem anos que não chegou a completar. De terno escuro, gravata preta, impressionava pelo evidente desconforto de estar ali. Não ali, no restaurante, onde foi gentilíssimo com todos os convidados, mas ali, preso à própria existência. Era um homem cansado, física e metafisicamente.  Não era difícil imaginar o esforço com que atravessava mais um ritual da vida literária, o de grande autor convidado em país estrangeiro.

Todo o tempo Sábato era fotografado pelo filho de sua mulher. Ambos o acompanhavam e pareciam zelar por ele como fariam por um monumento histórico. A combinação daquela alma pesada com os cliques da máquina e uma certa solenidade nas conversas davam ao jantar um ar póstumo, em tudo e por tudo estranhíssimo.

Como não tinha que escrever sobre o encontro ou entrevistá-lo, passei a simplesmente assistir àquela cena. As conversas giraram em torno das generalidades usuais, as anedotas da vida literária. Me ficou na cabeça apenas os comentários jocosos dele sobre o jovem Roa Bastos. “Roa era muy feo, muy feo“, repetia ele.

Foram muitas fotos, muito esforço para ouvir sua voz cansada e para concatenar suas observações díspares. Na saída, chovia cântaros. Em casa, enviei e-mails um tanto atormentados a alguns de meus amigos mais próximos. Aos 33 anos, bem menos cético do que hoje, tinha me defrontado, pela primeira vez de forma devastadora, com a decrepitude humana em sua forma mais radical: a resistência à morte depois de uma vida sofrida, da luta política à perda de um filho.

Por uma mera lacuna de formação, não havia lido Sábato antes deste encontro. E preferi não ler depois. Um amigo, ele mesmo dando trato a angústias pessoais, me relatou logo depois a contundência de Antes do fim, as memórias do escritor. E o que ouvi, somado a estas lembranças, me bastaram para ter certeza de que há muitas formas de ler um escritor. E uma delas pode ser um estranho jantar sob a chuva torrencial de março, que nem é o mais cruel dos meses.

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