Marx e o moletom vermelho

Correspondência

03.02.11

Galera,

No meu caso, não havia muita opção. Não que tenha sido uma criação doutrinária, longe disso. Mas os argumentos do meu pai eram muito sólidos. Engraçado que até uns doze eu ainda acreditava em deus e nessas porras, até fui pedir para ser batizado. Lembro do meu pai me fazendo ler os dez mandamentos, muito incrédulo de que eu ia seguir aquilo tudo. De fato, barrei minhas intenções religiosas ali no NÃO COBIÇARÁS. Eu já tenho tão pouco.

Comecei a ficar interessado ali pela oitava série. Meu colégio tinha um festival chamado Arteando, que revezava com a feira de ciências. Eu vinha de um sucesso estrondoso na sétima série, com um barômetro que causou sensação. Resolvi apresentar um trecho do manifesto comunista, em forma de peça. Era bem simples: primeiro entrava um amigo que representava a burguesia. A Tatiana fazia a voz do proletariado. Eu era o Marx, claro. E a gente colocou o gordinho do grupo num moletom vermelho; ele era o comunismo. Bicho, foi muito épico.

Eu entrava explicando o que era luta de classes, e dizendo que eu mesmo era produto da luta de classes. A coisa ia num crescendo: “Digo que sou um produto da luta de classes porque o meu pensamento, as minhas idéias, não nascem de especulações teóricas. Elas são a expressão da luta do proletariado contra o regime burguês. As minhas idéias comunistas existem porque o proleariado é hoje forte na Alemanha, na França e na Inglaterra. O comunismo existe por que a industrializacão se espalhou por toda a Europa. Porque a classe operaria está organizada em grandes sindicatos. Tudo isso torna possivel a existência do pensamento e do partido comunista, que nada mais são que a expressão consciente da vontade da classe operária destruir a burguesia, destruir a sociedade de classes e acabar com a exploração do homem pelo homem. Os filósofos até hoje se limitaram a interpretar o mundo. Eu quero mudar o mundo” .

Eu estava meio nervoso mas tinha decorado o texto direitinho. O proletariado e a burguesia também capricharam (a Tatiana não encarou a empreitada com a seriedade que eu esperava, todavia, e não tinha pinta de trabalhadora). Quando o gordinho foi falar o texto do comunismo (que nem era longo, eu conhecia a figura), ruína: ele se limitou a caminhar lentamente até o microfone e, com uma pausa dramática, entoar: “Eu sou o comunismo. Eu serei inventado pelos homens do futuro”. Fim. Ainda assim, a apresentação foi um sucesso.

Daquele dia em diante acho que já comecei a dizer que era comunista, como se tivesse ganhado o direito. Estava na fase que o Lênin chama de “doença infantil do comunismo”, mas achava legal ficar dizendo para os amigos mais progressistas que o PT era um partido de direita. No ano seguinte eu fui para Londres, fazer um curso de jornalismo. Ao mesmo tempo, a cidade recebia o MARXISM 97, um evento da esquerda britânica mais radical. Resolvi que ia me dedicar. Foi bem legal, viu? Até hoje tenho umas fitas K7 com as mesas que eu assisti. Os sujeitos discutiam de tudo (uma das mesas era sobre o retrocesso político do operariado brasileiro, por culpa do Lula), e me pareciam infinitamente eruditos.

Voltei na TIRIÇA de virar um comunista mais sério, e até me inscrevi na IV Internacional, capítulo londrino. Confesso que eu não sabia direito o que era militância, e na minha cabeça eles iam ligar de madrugada com umas missões secretas. Eu tinha uns quinze anos, sei lá. Mas eu comecei a ler muita teoria política e a me interessar demais pelo assunto. Em pouco tempo, eu convenci um amigo da juventude do PT que ele estava militando pelos interesses da direita. Como ele trocou de escola, ficamos uns meses sem nos falar. Continuei lendo e me declarando comunista (ainda mais porque eu estudava num colégio reacionário). Uns tempos depois, encontrei esse amigo, e ele já estava militando na juventude do PCB. Aderi meio que imediatamente.

A outra parte da história é longa, cheia de mimimi e culpa burguesa, então vou te poupar até segunda ordem. Mas é engraçado. Se fosse outra época, há uns dez anos, eu teria colocado as suas preocupações de isolamento e existência na conta das aflições burguesas. Não achava que nenhuma dessas questões fosse relevante, ou tivesse qualquer influência na luta de classes ou no andar da carruagem revolucionária. Na verdade, eu achava que todo pensamento sobre o eu era desprezível, a não ser quando se tratasse de mim. E mesmo o discurso do DFW, “This is water”, que eu fiquei ouvindo esses dias.

Rapaz, tem alguma coisa ali no fim, naquele infinito perdido, o troço é bonito mesmo. De novo, se fosse há dez anos, eu nem chegaria no trecho em que ele diz que não se trata de moralismo. E só me preocuparia em descobrir se ele era de esquerda ou direita. Para horror absoluto do Mojo, sigo comunista, mesmo que numa acepção mais particular da coisa. Ainda acho o Trotsky um baita escritor (vou te mandar uns trechos dos diários) e o 18 Brumário um livraço, estética e politicamente. Mas, sei lá, o que o DFW diz ali sobre empatia (e que está de alguma forma em todos os meus livros favoritos) me parece um tipo de atitude pessoal (nossa, como eu desprezava) tão progressista quanto se pode ser. Mais que isso, e repetindo: é bonito pacas, e às vezes basta. Esquerdismo, doença infantil do comunismo INDEED.

Agora, você seria muito bem aceito na UJC: ninguém usava óculos escuros, ninguém. Orgulho dos meus companheiros. Por conta daquelas manchas na vista, eu preciso usar de vez em quando, principalmente na praia (passo dias vendo umas luzinhas se não usar). Bicho, como eu fico constrangido, mas são questões médicas, então.

Todavia, tem mulher que fica muito sensual de Ray Ban, diz aí.

Abraços,

André

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