Sentimentos distópicos

Correspondência

13.08.13

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Cidade distópica

Oi, Cris. Tudo bem ?

É isso aí, sentimentos distópicos também tomam conta do meu coração frequentemente, e o Brasil ajuda muito nesse quesito. Como você, também sou chegado numa distopia. Por gosto literário, mas principalmente por impaciência etária, vivência das ambiguidades, paradoxos e contradições da natureza humana que formam o verdadeiro PAC e são o tempero dos comportamentos  na guerra cotidiana entre nossos instintos (devidamente refinados ou customizados pela evolução) gregários e desagregadores. Na luta pelas rações afetivas de amor familiar, amor sexual, amor romântico e amor-próprio, chamado hoje em dia de autoestima. Departamentos da gincana social para obtenção da felicidade, obrigação humanista e moderna que também se mostra uma armadilha, pois na real para a maioria das pessoas é difícil conjugar, equilibrar essas autobahns amorosas que sacodem as personalidades. Também porque felicidade virou sinônimo de eficiência e gozo. Já foi associada a um momento de plenitude, a um enlevo de estar vivo, já foi associada a conhece-te a ti mesmo e também já foi considerada impossível, pois o mundo é por demais injusto para que ela exista. Mas agora viver intensamente e desempenhar é a regra para se obter a tal da felicidade. Por isso sete pecados versus sete virtudes capitais ainda funcionam muito bem para compreender e lidar com a tal da natureza humana, que insiste em atrapalhar as eficiências.

Amor, Poder e Morte. Três palavras com vastos territórios na história e que dão o ritmo da vida em sua fragmentação urbana, seus labirintos, seus emaranhados psicológicos tão recentes na caminhada do primata inventivo sobre a Terra. Sentimentos distópicos envolvem a descrença no progresso, a mola-mestra da modernidade, sustentada na fé de que com tecnologia, com ciência aplicada, poderemos eliminar as dores da existência, as dores das doenças, a pobreza e principalmente os conflitos entre os assim chamados humanos. Fé de que avanço tecnológico e ético caminham juntos. Fé de que nascemos bons e que a sociedade nos corrompe com opressões que nos separam em vitimas e algozes fixos no decorrer da história. Nascemos bons e o mundo nos deve alguma coisa. Nascemos com instintos progressistas, ou seja, toda a tecnologia e todas as revoluções, ciência e arte e civilização nos levam sempre para um mundo melhor em termos totais. A visão de uma sociedade virtuosa via tecnologia, via organização racional (no fundo para substituir a grande organização religiosa do cristianismo, que cobria todos os aspectos da vida) com o intento de eliminar a precariedade, os erros, as fragilidades, as irracionalidades e genialidades tortas inerentes ao ser humano, inerentes ao seu neuroma, esse sonho de um novo homem, utopia-mor dos modernos (utopia na verdade queria dizer “lugar nenhum” e acabou ganhando um sentido piegas de lugar onde a harmonia para a qual a humanidade, essa abstração humanista, caminharia) vazou direto com duas guerras quentes, uma fria, uma sociedade de consumo e consumação de tudo, globalização financeira, turismo e militarismo tomando conta do planeta que se transformou numa teracidade com centros de firmeza produtiva e periferias complementares, países como parques temáticos, pessoas como parques temáticos. Cassino mundial submetendo economias nacionais, culturas como meras disneylândias, nações com sua cota de invisíveis puteiros de máfias e terceirizações clandestinas (ou não) fazendo parte do status quo do PIB mundial. Estados atropelados pela tal globalização financeira, alguns até sumindo. E o espetáculo das comunicações e da internet contribuindo para a aceleração e saturação de tudo e dando mais um gás naquela crença no progresso, ou seja, via comunicação compartilhada e veloz, via redes sociais em troca constante de informações, via guerrilha dos smarts e seus aplicativos, via geringonças digitais construiremos o novo homem participativo com outro teor cognitivo. A totalidade sustentavel nos guiará para a grande sociedade virtuosa.

Enveredei por todo esse assunto porque ele tem uma relação óbvia com distopia mas também com os outros temas que você apontou na carta: a manada reivindicativa saindo às ruas numa catarse furiosa e festiva mas com perspectiva de se defrontar com ruas que vão dar em muros e becos cheios de saída no que diz respeito à eficiência das suas manifestações contribuindo para a regulação do quadro institucional, o fator rastilho de pólvora das redes sociais convocando e reportando tudo incessantemente (quantas vezes o mundo é gravado, registrado, digitalizado todos os dias? Empresas jornalísticas e produtoras audiovisuais faziam isso e geravam zilhões de imagens e sons, agora multiplicadas por bilhões pois todos hoje são jornalistas informais com seus smarts), a especulação de realidade alternativa transferindo esses tempos de boca-a-boca virtual para a época da ditadura e que nos leva a constatar que vivemos numa mão e contramão de apropriações de informações. Hipermultinacionais, Estados e clandestinidades, informalidades, pirateações, empreendimentos com pouca grana, todos perfis de consumidor misturados com cartografias de cadastros e biossenhas.

Você mesma perguntou: quem oprime quem? Claro que o mundo melhorou pra muito mais gente do que jamais se poderia sonhar antes. Claro que a internet foi uma revolução quando apropriada pelo povão urbano, mas surgiu de uma elite militar universitária e não podemos esquecer que Google, Facebook, Adobe, Apple, Microsoft e quem mais vier do cinturão de cidadezinhas do Vale do Silício são negócios. A internet não é o que muitos acadêmicos oportunistas quiseram nos impingir, ou seja, um movimento de baixo pra cima de convulsão libertária movida a  aplicativos. Uma tecnologia valendo por si só surgida do nada e sem implicações de poder. Um novo grito de power to the people sem obstáculos. Parece que não é só isso. Internets nacionais vão surgir em face de novos controles antitudo, hackers estão há muito pretendendo parar a vida digital, ou seja, a vida no planeta, nossas privacidades e subjetividades, vida interior e lar-doce-lar-trincheira-protetora-da-família,  inventados modernamente há alguns séculos, já foram explodidos e invadidos, e tudo virou mercadoria mesmo. O que não impede que esperanças e Graças sejam celebradas, pois somos condenados a elas.

Sentimentos distópicos. Também gostei muito da sua consideração sobre as hipérboles urbanas. Rio cada vez mais Rio, São Paulo cada vez mais São Paulo etc. Parques temáticos sacudidos pela Era dos Megaeventos. Cidades-Evento. Junto com a desregulamentação financeira e as reestruturações contínuas dos estados aconteceu também via comunicação (na Guerra Fria quem mandava era o complexo industrial-militar, agora é o complexo industrial-militar de serviços e entretenimento, altamente disperso e camuflado) a desregulamentação das fronteiras entre arte e negócio, entre cultura, esteio da humanização, e o entretenimento colonizando todos os aspectos da vida transformada em show de realidade patrocinada. Eventos e inclusões totais.

Estamos claustrofobizados por saturações e excessos de abusos industriais, mas também de sustentabilidades. A exploração agora é pra dentro do ser humano. O que era barato místico agora é comercial, neobiocyber. E as fronteiras éticas também podem ser desregulamentadas. Já sabemos que democracias são como aqueles edifícios japoneses à prova de terremoto: balançam mas não caem. Resistem aos tremores das ditaduras, dos totalitarismos, das tiranias, das anarquias e terceirizações de clandestinidades mafiosas (ou não). E ainda existe a inércia que impedirá sempre a plena cidadania, ou seja, as pessoas querem mesmo tomar as rédeas do poder e serem participativas, além de representadas? Para muitos pesquisadores e pensadores, as populações gostam de ir contra o Poder, mas não de assumi-lo. As pessoas odeiam ou não têm saco pra exercer o poder. Mas no mano a mano, indivíduo contra indivíduo, o couro come.

Vou  terminar por aqui essa segunda carta devendo alguns comentários sobre outros tópicos que você levantou, e também prometendo enveredar por outros estados de consciência, como se dizia nos anos setenta, não apenas o político-especulativo. Enveredar pelo nosso livro também.

Grande beijo,

Fausto F.

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