Kon-Tiki, aventura da luz

No cinema

09.08.13

A aventura de Kon-Tiki

A primeira tomada de A aventura de Kon-Tiki é bela e eloquente: numa paisagem embranquecida – uma planície de gelo com montanhas nevadas ao fundo – um menino se aproxima da câmera fixa até que seu rosto toma toda a tela. Surgidas daquela vastidão monocromática, as cores resplandecem vivas como nunca: o azul dos olhos do menino, o vermelho de seus lábios.

Ainda não sabemos que o menino é o norueguês Thor Heyerdahl, que atravessará o Pacífico entre o Peru e a Polinésia numa jangada de madeira para demonstrar sua tese de que um povo ameríndio pré-incaico realizou a mesma travessia 1500 anos antes.

http://www.youtube.com/watch?v=TgQT015LLU8

Esse longo e silencioso plano inicial, que transita da paisagem ao indivíduo, da natureza bruta ao drama pessoal, é praticamente repetido no filme uma hora e meia depois: fixada numa praia da Polinésia, a câmera registra a aproximação do Thor adulto (Pål Sverre Hagen) que sai do mar, até enquadrar em close seu rosto barbado e tostado pelo sol ao final do périplo espetacular.

Duplicações e reflexos

Mais do que uma mera rima interna, é uma das várias repetições do filme, ou antes de reflexos especulares, em que tudo parece ter seu duplo. Assim como a expedição de Heyerdahl de 1947 duplica a travessia realizada pelos ameríndios há 1500 anos, o atual filme de Joachim Rønning e Espen Sandberg duplica o documentário realizado pelo próprio Heyerdahl em 1950 e ganhador do Oscar da categoria. (Incidentalmente, A Aventura de Kon-Tiki foi indicado, por sua vez, ao Oscar de filme estrangeiro). Aqui, um trecho do documentário, que permite verificar, de passagem, a fidelidade do longa atual:

http://www.youtube.com/watch?v=EX-upSji8J0

O quase afogamento do menino Thor num lago gelado, no começo do filme, é replicado quando o Thor adulto cai no mar durante uma tempestade, no meio da expedição, e mais uma vez ao final da jornada, quando a jangada se choca contra os recifes na costa polinésia. Tudo reforça uma ideia de construção circular, ou melhor, em espiral, já que nada é exatamente igual ao que foi, mas sim uma analogia elevada a um plano superior.

É nesse contexto que ganha pleno sentido o único momento alegórico inserido bem no centro de uma narrativa de resto sóbria e objetiva (a ponto de reproduzir muitos dos enquadramentos do registro documental da expedição de 1947). Estou falando da cena em que, depois que as correntes marítimas redirecionam a embarcação na direção certa, a câmera se afasta da jangada, atravessa as nuvens e sobe para as estrelas e galáxias, num movimento contínuo – uma celebração eufórica e vertiginosa do poder ilimitado da vontade humana.

Escrita com a luz

O que diferencia drasticamente Kon-Tiki dos filmes corriqueiros de aventura não é tanto o fato de se basear numa odisseia moderna real, mas sim o tratamento essencialmente cinematográfico da narrativa, o modo como a iluminação, o enquadramento e a montagem constroem o drama, em vez de simplesmente ilustrá-lo.

Não há, salvo engano, um único plano em que a luz e a cor sejam tratadas de modo vulgar ou convencional, em que não desempenhem um papel criativo fundamental. Das ruas quase em preto e branco de Nova York, em que resplandecem o amarelo dos táxis, às cenas noturnas no oceano, em que só se vê o que a trêmula iluminação dos lampiões alcança, passando pelo espetáculo das águas-vivas fluorescentes (espelho invertido do céu coalhado de estrelas), a luz é tudo nesse filme em que, não por acaso, a câmera 16 mm usada na expedição é um personagem central. Como bem sabia o etnógrafo e cinegrafista sueco Bengt Danielsson (Gustaf Skårsgard), que participou da jornada do Kon-Tiki e a documentou, a aventura só existiria na imagem e para a imagem.

Talvez por serem privados da luz durante boa parte do ano, os escandinavos a valorizam como um bem tão precioso e a tratem com tanta delicadeza e maestria, dos pioneiros Victor Sjöström e Carl Dreyer a Lars von Trier, passando obviamente por Bergman e seu fiel parceiro Sven Nykvist. Fiel a essa tradição, A aventura de Kon-Tiki é, antes de tudo, uma aventura da luz.

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