Poesia marginal: no centro

Literatura

08.08.13

Na sexta-feira, 9 de agosto, o IMS-RJ abre a exposição Poesia Marginal – Palavra e Livro, com curadoria de Eucanaã Ferraz. Mais de 60 publicações serão expostas, em sua maioria livros dos anos 1970, auge da expressão da poesia marginal.

Página interna do livreto Bagaço (1979), de Nicolas Behr

Página interna do livreto Bagaço (1979), de Nicolas Behr

Numa de suas canções mais conhecidas – “Vapor barato”, parceria com Jards Macalé -, Waly Salomão cravou: “Eu não preciso de muito dinheiro, graças a Deus”.

A senha para aqueles dias estava dada: valia mais o afeto que a grana. E era urgente que se dissesse isso; que se espalhasse isso; que se fizesse disso um ato.

A poesia pegou a trilha da canção e, num tempo dominado pelo horror e pela brutalidade, fez-se “por fora”, “na margem”.

Sabia-se na carne – literalmente – o que se sabe: que toda palavra é ação e toda ação é política. Fazendo o ato poético crescer para fora de seus limites convencionais – a margem pode ser, muitas vezes, mais vasta do que se imagina -, os poetas misturaram poesia e futebol, poesia e carnaval, poesia e música, poesia e artes plásticas, poesia e teatro, trazendo ao território da palavra tudo o que expressasse a urgência de contrapor à solidão o companheirismo, à incerteza a esperança, à violência a alegria, ao autoritarismo a liberdade, à morte a vida.

Mas a poesia marginal não fugiu dos livros. Antes, fez deles instrumento privilegiado. Sem “muito dinheiro”, os autores inventaram meios de editar ao largo das editoras, pouco receptivas a um gênero nada comercial. O objeto falava por si mesmo. Havia algo de guerrilha, de panfleto.

Luvas de pelica (1980), de Ana Cristina Cesar, e Beijo na boca (1975), de Cacaso

Luvas de pelica (1980), de Ana Cristina Cesar, e Beijo na boca (1975), de Cacaso

Tudo começou com o mimeógrafo, na época, o principal equipamento de reprodução de textos nas escolas, que logo serviria ao movimento estudantil para espalhar mensagens políticas. Mas que poetas se utilizassem do estêncil e do álcool para fazer livros era algo imprevisto. Desde esse início, portanto, política e pobreza definiram a atitude da poesia no circuito dos chamados bens culturais. Em seguida, passou-se a utilizar o xerox (o nome da marca acabou se convertendo no nome do processo), e não tardaria a chegada do ofsete.

Muito embora este último fosse o processo utilizado pelas grandes editoras, é fundamental observar que os poetas marginais continuaram mantendo algo do que chamei de pobreza: uso de grampos em vez de costura; envelopes e sacos em vez de encadernação; papéis de baixo preço e mesmo considerados toscos, como o kraft; impressão em, no máximo, duas cores; emprego de instrumentos estranhos ao meio editorial, como o carimbo, comum em escritórios e repartições públicas.

Brasileia desvairada (1979), de Nicolas Behr

Brasileia desvairada (1979), de Nicolas Behr

Se a produção gráfica pobre obedecia a uma condição inevitável – fazer livros era algo dispendioso -, não há dúvida de que o baixo custo representava também uma escolha: o livro mais barato era mais acessível e, portanto, poderia alcançar mais leitores; opunha-se de cara ao livro caro, ao objeto requintado da alta cultura, às soluções caras do esnobe mercado editorial. O livro barato era um objeto político: antiburguês. Não é por acaso que “barato” era uma das gírias da época, usada para qualificar algo excelente: uma coisa muito boa era “um barato”, “um barato total”, “o maior barato”, “um grande barato”.

Aqueles livros pobres construíram, no entanto, uma estética singular, surpreendentemente inovadora e sofisticada. Como linguagem – basta vê-los hoje -, são, sem dúvida, ricos, porque carreiam diversos significados, espelhando graficamente seus conteúdos – o verso veloz, insolente, próximo da fala cotidiana, com o humour e a ironia vizinhos à confissão áspera ou a certa sensibilidade romanesca. Tradição literária, vanguardas, mundo pop, tudo tinha lugar.

Boca roxa (1979) e América (1975), ambos de Chacal

Boca roxa (1979) e América (1975), ambos de Chacal

Penso rapidamente em alguns exemplos. A fugacidade e a pressa dos versos de Chacal estão também no traço do desenho de Picasso, apropriado com perfeição nas capas da trilogia Nariz aniz, Boca roxa, Olhos vermelhos, em projeto de Luis Eduardo Resende; e, máximo requinte, os poemas são impressos de acordo com as cores citadas nos títulos. Ou, também de Chacal, a capa de América, assinada por Rogério Martins, o Dick, em que simplicidade e repetição conseguem um efeito escultural sem qualquer artifício de luz e sombra, e a cor chapada parece igualar todos os sujeitos na multidão. Também é de Dick a capa de Perpétuo socorro, livro de Charles Peixoto, que recorre à fotografia para um efeito dramático, ou, pode-se dizer, melodramático, fazendo ver em sua intensidade plástica um retrato emotivo de seu contexto histórico, marcado sobretudo pela ditadura militar.

Outro excelente exemplo é Coração de cavalo, outra coleção de poemas de Charles, em cuja capa, de Ana Luisa Escorel, fundem-se o pop e o kitsch, remetendo ainda às linguagens do cinema e das revistas de entretenimento. Na corda bamba, de Cacaso, teve versões datilografada, em xerox e em ofsete, sempre com a mesma dimensão reduzida e o uso dos desenhos feitos por seu filho, como se o livro confrontasse a brutalidade com a graça e a delicadeza.

Nicolas Behr avançou a ponto de atuar, a um só tempo, como editor, impressor, programador visual, ilustrador e poeta. O resultado é um caso à parte dentro do quadro da poesia marginal – para além do fato de ele ser um marginal vivendo tão distante do Rio de Janeiro -, tanto pela inventividade de suas soluções gráficas quanto pela capacidade de fazer delas uma espécie de paródia à exacerbação plástico-racionalista de Brasília. Os desenhos de Zuca Sardan são um vento extraordinário, pois se realizam como parte integrante dos poemas, o que dá outros moldes às próprias noções de escrita e de ilustração.

Página interna de Brasileia desvairada (1979), de Nicolas Behr

Página interna de Brasileia desvairada (1979), de Nicolas Behr

Registro, por fim, que, sobretudo em função de suas pequenas tiragens, tais livros são hoje raridades bibliográficas. Uma mirada do conjunto possibilitará uma melhor compreensão da poesia marginal hoje, no centro de nossas atenções.

* Eucanaã Ferraz é poeta e consultor de literatura do IMS.

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