O feiticeiro: corpo e alma

Cinema

11.12.12

O IMS exibe, em dezembro, a mostra Liv & Ingmar, com filmes que registram a colaboração de Ingmar Bergman e Liv Ullmann.

Imaginemos uma figura formada metade pelo rosto de Ingmar Bergman e metade pelo rosto de Liv Ullmann. Essa é, talvez, a melhor representação de uma parceria iniciada com um filme em que a imagem central é um rosto de mulher criado pela montagem do rosto de suas duas intérpretes. Um primeiro plano feito com metade da face da enfermeira Alma (Bibi Andersson) e metade da face da atriz Elisabeth Vogler (Liv Ullmann) bate na tela num certo instante de Persona (1966).

É uma imagem incômoda de ver. Traz uma estranheza não muito fácil de localizar. Nada se move nela, parece suspensa no tempo e no espaço. Uma deformação torna o rosto um pouco menos humano. Olhos, nariz, boca, tudo está em seu devido lugar – mas não em boa ordem. Um extremo de tensão e ao mesmo tempo um extremo de frieza na expressão.

O rosto não parece distorcido por qualquer efeito especial – a trucagem, se existe, e ela existe mesmo, não foi feita para ser percebida à primeira vista, para se impor como deformação, caricatura, brincadeira de maior ou menor irreverência, para que o espectador dê mais atenção ao efeito da fotografia que à pessoa fotografada. Ou se trata da imagem que surgiu primeiro, que gerou a história narrada em Persona, ou da imagem que condensa o que o filme nos conta.

Numa só imagem as duas protagonistas e a história do filme: a atriz que perdeu a voz ou a capacidade de falar e a enfermeira que se propõe como a voz da atriz. É como se no cinema o espectador passasse a recitar o texto que a personagem (cinema mudo?) não diz. A enfermeira Alma, como uma espectadora no cinema, projeta-se na personagem, Elisabeth, e transforma o silêncio da atriz em palavras. Uma só imagem e uma só personagem, Elisabeth, a que cala, é Alma, a que fala.

A imagem dura pouco (talvez só o tempo necessário para perceber a estranheza, talvez um tempo insuficiente para perceber a trucagem): aparece depois da repetição de um monólogo da enfermeira. O mesmo texto é recitado com a câmera de frente para Elisabeth e depois com a câmera de frente para Alma. Concluído o monólogo recitado sobre o rosto mudo da atriz, a cena recomeça, exatamente igual, com a câmera então no rosto da enfermeira. A iluminação lateral dos rostos da atriz e da enfermeira, enquanto se recita uma primeira e uma segunda vez o monólogo, prepara a imagem Alma / Elisabeth. São dois planos. Enfermeira e atriz aparecem com metade do rosto apagado: a luz lateral ilumina só a face esquerda de Elisabeth, só a face direita de Alma. A metade coberta pela sombra é eliminada adiante para a cena se compor pela montagem das duas metades em boa luz. O som de uma sirene bate forte, como explosão logo depois da fala sussurrada da enfermeira. Mas apesar do alarme que sublinha a imagem não é certo que o espectador se dê conta do que de fato vê. Ou melhor, não é absolutamente certo que ele se dê conta de algo além da estranheza do que vê.

Na filmografia de Bergman Elisabeth Vogler que perdeu a voz ou a vontade de falar é, ao mesmo tempo, uma imagem nova, o rosto tenso de Liv Ullmann, e uma nova imagem do ator e hipnotizador Albert Vogler (Max von Sydow) de O rosto(Ansiktet, 1958). O Vogler de O rosto é em tudo parecido com a Vogler de Persona Elizabeth, também uma atriz. Como o, digamos, irmão mais velho Albert, Elizabeth Vogler, se recusa a falar. Hospitalizada, submetida a longo tratamento, ela se mantém muda, apesar de, na opinião da médica, ser uma pessoa “perfeitamente sadia, de corpo e de espírito, sem qualquer doença ou qualquer tipo de reação histérica”. Os dois filmes falam de personagens de uma mesma família, e por isso mesmo os atores são chamados a representar estes quase irmãos com gestos muito parecidos. Persona se passa no tempo presente, a história está ambientada no tempo da filmagem, a década de 1960, e quase todo o tempo na tela existem apenas dois personagens, a atriz muda, Elizabeth, e a enfermeira que cuida dela, Alma. O rosto se passa na metade do século dezenove e o artista mudo é confrontado com vários outros personagens. As diferenças, no entanto, acabam aí. Max von Sydow, o intérprete de Albert Vogler, e Liv Ullman, a intérprete de Elizabeth Vogler, são levados a expressar a mudez através de suas bocas.

Quando a atriz Elizabeth ouve os longos monólogos da enfermeira Alma, é filmada em primeiro plano. Seu rosto está sempre perto da câmera, e seus lábios,  que se entreabrem e se mexem nervosamente sem emitir nenhum som, se destacam na composição da imagem. O mesmo acontece com Sydow, na cena em que Vogler é questionado sobre seu silêncio. O ator cria um personagem só boca. Tudo o mais em seu rosto quase nem importa. O corpo, então, nem mesmo existe. Só a boca  – talvez porque todo espectador aguarda nervoso e tenso o desenvolvimento da cena, ansioso por saber se a humilhação levará o artista a reagir com palavras, ou se ele irá manter o seu silêncio.

Mas a Elisabeth de Persona não representa só uma retomada do protagonista de O rosto: é também um ponto de passagem para os Vogler dos seguintes trabalhos de Bergman e Ullmann: A hora do lobo(Vargtimmen, 1967) e Vergonha (Skammen, 1968).  Os três têm uma tema comum, disse Bergman ao apresentar o último deles, a fusão/ identificação/ projeção de uma pessoa em outra (a projeção sentimental do espectador no personagem de um filme, por exemplo) e a oposição entre a palavra e o silêncio:

“São filmes muito pessoais, tratam dos demônios que atormentam a vida dos artistas. Trabalhei estas questões em outros filmes assim como um malabarista que joga várias bolas para o ar e procura não deixar cair nenhuma delas. Eu queria apanhar a que me permitiria dar forma a estes temas que trazia na cabeça.”

O carvão incandescente do projetor, a roda dentada, a película que corre na engrenagem, o esqueleto que persegue um homem com camisola de dormir, a mão caída e inerte, os números que marcam os segundos que precedem a primeira imagem na ponta de um rolo de filme, os pés que o lençol não consegue cobrir, a mulher morta de cabeça para baixo, os pés sobre a mesa do necrotério, as mãos que dançam diante da luz para jogar alguma sombra na parede, a mulher de maiô no desenho animado de cabeça para baixo, o cravo pregado na mão aberta, a aranha, as mãos que seguram o carneiro, a grade pontiaguda, a floresta vazia, o olho em primeiro plano, as mãos cruzadas sobre o peito, o rosto morto que subitamente abre os olhos  – estas imagens aparecem no prólogo de Persona, montagem livre, numa tela que uma vez iluminada se torna de um branco intenso, com a imagem às vezes pequenina num canto do quadro. Aparecem no prólogo e avançam letreiro adentro, piscam na tela entre um e outro letreiro por uma fração de segundo. Planos mais demorados são aqueles em que um menino estende a mão e toca os olhos e a boca de dois grandes rostos de mulher que aparecem e desaparecem sobre um fundo de luz intensa. Cinema mudo, sublinhado pelo ruído de uma gota d’água, pela campainha de um telefone, por uma sirene de alarme, pelo ruído do projetor. No prólogo de Persona, um outro modo de representar o silêncio dos Vogler, de mostrar a metade do rosto de Elisabeth à espera da metade do rosto de Alma, um outro modo de discutir o que pode ser um fingimento, uma fraude, um truque, ou gesto deflagrador de tensões em quem, como  a enfermeira Alma, tem “uma enorme admiração pelos artistas, porque a arte tem uma enorme importância na vida, sobretudo para os seres que possuem dificuldades”.

Imaginemos uma figura formada metade pelo rosto de Ingmar Bergman e metade pelo rosto de Liv Ullmann: a questão discutida nos três primeiros filmes que realizou com o rosto de Liv Ullmann, já se encontra enunciada na introdução a um volume publicado em 1960 com os roteiros de quatro de seus filmes:

“Olho para mim mesmo como uma espécie de feiticeiro, uma vez que o cinema é baseado numa ilusão do olho humano. Cheguei à conclusão de que se vejo um filme com a duração de uma hora fico sentado diante de 27 minutos de completa escuridão – os pedacinhos pretos que separam os fotogramas do filme. Quando exibo um filme sou culpado de fraude. Uso um aparelho construído para se aproveitar de uma certa fraqueza humana, um aparelho com o qual posso sacudir a plateia de uma maneira altamente emocional – fazê-la rir, gritar de medo, sorrir, acreditar em histórias de fadas, tornar-se indignada, sentir-se chocada, encantada, profundamente tocada, ou, talvez, bocejar de tédio. Em qualquer dos casos eu sou um impostor ou, se a plateia está desejosa de ser guiada, um feiticeiro. Apresento truques de feitiçarias com aparelhos tão caros e maravilhosos que qualquer artista do passado daria tudo no mundo para possuí-los”.

(Four Screenplays of Ingmar Bergman, Secker and Warbrug Editors, Londres)

Assim, na imagem metade Alma, metade Elisabeth, de Persona, Bergman propõe um jogo especialmente fotográfico, congela o filme, interrompe o movimento da imagem para que ela possa ser percebida como uma foto, uma imagem do processo criativo da arte: metade o artista, o feiticeiro ali no pedaço do rosto de Ullmann, metade o espectador, a alma da arte ali na metade do rosto de Andersson.

* José Carlos Avellar é coordenador de cinema do IMS.

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