Confissões de um autor paranoico

Colunistas

11.06.14

Marine Le Pen, líder da Frente Nacional, partido da extrema direita francesa

O autor paranoico vai a Bruxelas assistir à estreia da peça que ele escreveu com produção do Teatro Nacional da cidade. O fato de ser ele o autor do texto desperta imediatamente a sua paranoia. Por uma infeliz coincidência cujas consequências para a recepção e o futuro do espetáculo ainda são imprevisíveis, a peça estreou poucos dias depois do atentado ao museu judaico da cidade (que deixou quatro mortos) e das eleições europeias (que fizeram da Frente Nacional o “primeiro partido da França”, nas palavras provocadoras de sua líder, Marine Le Pen). A peça fala de um mundo em decomposição, estrangulado entre a crise financeira e a ascensão da extrema direita. E, sobretudo, da impostura e do oportunismo, típicos dos fascismos, que confundem natureza e cultura (o solo e a língua), oferecendo o mito da nação e dos valores nacionais na falta de soluções objetivas para a crise.

O espetáculo é muito aplaudido desde a estreia, mas, como bom paranoico, o autor não acredita em nada. Basta começarem a aplaudir para ele começar a desconfiar. Na sua cabeça, só podem ser aplausos de apoio (de amigos e familiares de técnicos e atores) que escondem algum tipo de não-dito ou de constrangimento. Ele decide averiguar.

O paranoico sempre imagina o pior. Mas, neste caso, a dificuldade de comprovar sua imaginação é tanto maior por ele ser o autor da peça. Ninguém vai lhe dizer o que pensa de verdade (alguns, com tendências mais perversas, podem até se aproveitar da situação para alimentar a paranoia do autor, mas em geral o paranoico não é burro). Se fosse seguidor de alguma filosofia oriental, saberia que a verdade não está no outro. Se fosse adepto de alguma religião ocidental, é bem possível que tivesse começado a rezar bem antes da estreia. Mas o paranoico não se deixa enganar por nenhum tipo de religião. Ele decide ir a campo por conta própria, para arrancar a verdade à força. E logo vira motivo de piada entre os membros da equipe.

O mais triste para o autor paranoico é que, de tanto insistir (ao contrário da grande maioria, que só ouve o que quer sem precisar perguntar nada), ele acaba ouvindo o que não quer – e que nem por isso está mais próximo da verdade. Vejamos um exemplo da sua estratégia: durante a recepção depois da estreia, ele se aproxima da diretora de programação de um importante festival de teatro e pergunta se ela gostou do que viu. “Sim, muito. É muito forte. Ainda mais no contexto atual”, ela responde, entusiasmada. Mas o paranoico não se dá por satisfeito. Percebe que, por meio de um subterfúgio sutil (para ela, é o momento social e político que faz a força da peça), a diretora está dizendo que, no fundo, não gostou. O paranoico não desiste. Continua a conversar com ela, distrai a diretora do festival com assuntos diversos antes de ter a chance de voltar ao ataque por outra frente: “E você acha que as pessoas vão gostar?”. Ao que a mulher, surpresa, já que estavam falando de outras coisas, responde: “Do quê?” “Da peça.” Ela titubeia: “Realmente, não dá pra saber”. O paranoico sai arrasado.

O paranoico transmite ao diretor da peça sua interpretação do que acabou de ouvir e o diretor tenta trazê-lo de volta à realidade: “Não, não. A diretora do festival conversou comigo, ela ficou encantada com a peça”. “E por que ela não me disse isso claramente?”, pergunta o paranoico, já arquitetando uma nova estratégia. Ele a põe em prática na primeira oportunidade. Quando o próximo interlocutor se aproxima, o autor paranoico passa a questionar o texto, ponderando sobre a coincidência entre a representação e a atualidade. E é quando é sacudido por um empurrão, acompanhado de uma cotovelada nas costas. Ele se vira indignado e vê o diretor do Teatro Nacional, que já não o reconhecera no início da noite e que agora conversa animadamente com um grupo ao lado, como se não o tivesse visto. Não pensa duas vezes: vai ao bar, pede um copo de vinho e, na volta, abrindo caminho, esbarra de propósito no diretor do Teatro Nacional, na esperança de derramar todo o copo de vinho no terno do sujeito, o que acaba não ocorrendo.

No final da noite, o diretor da peça vai contar ao autor paranoico que a certa altura o diretor do Teatro Nacional lhe perguntou: “E quem é aquele babaca ali, falando do texto? Não suporto esse tipo de gente!”. Ao que o diretor da peça teve de responder, constrangido: “É o autor”.

O autor paranoico terá que assistir a seis apresentações de sua peça antes de entender que, se continuar buscando a verdade até o final da temporada, em poucos meses estará morto (e não apenas pelos empurrões e pelas cotoveladas que eventualmente vier a receber). O autor paranoico entende afinal que, no teatro, a verdade pode oscilar tanto quanto o humor de seus colegas de clínica. Mais do que em qualquer outra arte, a verdade da véspera não garante a do dia seguinte. E, provavelmente mais do que em qualquer outra peça, o resultado desta depende de um conjunto de fatores da realidade – a começar pelo público, que está quase o tempo todo dentro da cena – tão imponderáveis quanto os que refletem a atualidade política da qual ela é a representação.

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