Charlotte Beradt (1907-1986)

Charlotte Beradt (1907-1986)

O golpe dos sonhos

Política

15.08.17

Nas páginas que seguem, apresentarei provas de que existe uma técnica psicológica que torna possível interpretar os sonhos, e que, quando esse procedimento é empregado, todo sonho se revela como uma estrutura psíquica que tem um sentido e pode ser inserida num ponto designável nas atividades mentais da vida de vigília.

Essas são as primeiras linhas de A interpretação dos sonhos, publicado por Freud em 1900. Pouco mais de 30 anos depois, os sonhos dos alemães que viviam os horrores da Segunda Guerra foram recolhidos pela jornalista e ensaísta judia Charlotte Beradt, cujo trabalho mostra as pré-condições psicológicas para aqueles sonhos durante o período de recrudescimento do nazismo.

O resultado está no curto e denso Sonhos no Terceiro Reich – com o que sonhavam os alemães depois da ascensão de Hitler (Três Estrelas, tradução de Silvia Bittencourt), livro em que ela analisa os relatos de sonhos marcados pela angústia da opressão cotidiana, pela perda diária de mais um grau de civilidade, pela invasão cada vez menos sutil do poder de polícia e vigilância sobre as vidas submetidas ao regime autoritário.  Os sonhos recolhidos por Beradt estão carregados de imagens dos uniformes nazistas, de sentimento de impotência, culpa e tristeza, são, nas palavras dela, “reproduções de impressões mentais e morais”. Vivendo sob um regime de opressão, o que os sujeitos expressam nos sonhos é a impossibilidade de desejar e, portanto, de viver. Frases como “Não encontro alegria em mais nada” ou “Aqui é proibido [sonhar], o que é impossível de proibir” refletem a atmosfera de derrota pessoal de cada um dos que, sem perspectivas diante de uma vida subjugada, passava a noite atormentado pelos pesadelos diários.

Nesse ponto, o livro de Beradt conversa muito bem com “Por uma crítica da violência”, texto escrito pelo filósofo alemão Walter Benjamin em 1921. Ali, influenciado pelos horrores da Primeira Guerra, Benjamin percebe o caráter fantasmático da vigilância policial, a mesma que assombra os sonhos descritos por Beradt. “Sua violência não tem figura, assim como não tem figura sua aparição espectral, jamais tangível, que permeia toda a vida dos Estados civilizados”, escreve ele. Nos sonhos relatados pela ensaísta, há inúmeras descrições de microfones ocultos, medo de que falas e pensamentos fossem gravados por então imaginados “serviços de controles de telefonemas”, visões de aparelhos de escuta em máquinas de dentista, resultado da necessidade premente de esconder até de si mesmo aquilo que pensa ou sonha.

Estar aprisionado mesmo sem estar preso, não vislumbrar o futuro mesmo tendo muitos planos, não enxergar saída nem para os pequenos problemas são formas de opressão que compartilhamos no Brasil de hoje com os alemães de quase 100 anos atrás. Digo uma forma de opressão para deixar claro que sei a imensa, profunda e abismal diferença entre viver num regime democrático no século XXI e viver sob constante ameaça de morte no regime de exceção nazista. No entanto, em que pese todos os aspectos que nos separam, o afeto que marca a vida cotidiana brasileira – e de forma mais aguda, a fluminense – é a tristeza, o desânimo e, por que não dizer, o desamparo da falta de perspectivas, desejos e sonhos.

Todos os dias, alguém que tem os recursos necessários – não me refiro apenas a dinheiro, mas também escolaridade, passaporte, cidadania europeia etc – declara que vai embora do país. Pelo menos desde a década de 1980, esses surtos de migração pautam a classe alta desiludida. Portugal é o destino favorito, mas há também quem lute pela cidadania italiana, como se a Europa de hoje ainda fosse aquela das riquezas que um dia nos colonizou. O discurso de hoje é bem parecido com os que já ouvi no passado: desejo de criar os filhos num lugar melhor, encontrar outras oportunidades, fugir da crise econômica ou da violência. São pessoas cujos sonhos, desejos e realizações se mantém intactos, porque se darão fora daqui. Todos os dias, quando sei de um relato desses, penso o quão perverso é este país, ladrão dos sonhos dos que mal haviam começado a sonhar.

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