Corpo elétrico entra em cartaz no cinema do IMS Rio a partir desta quinta-feira, 17 de agosto.
Na primeira cena de Corpo elétrico, dois homens nus conversam na cama e o único deles que vemos incialmente, Elias (Kelner Macêdo), fala sobre o desejo ou necessidade que sente do mar, de imergir na imensidão aquática como meio de sair da dimensão do trabalho e das preocupações cotidianas.
Em contraste com esse início, em que o mar está presente na fala e ausente da imagem, no último plano do filme ocorre o exato oposto. Entre um extremo e outro, o longa-metragem de estreia de Marcelo Caetano pode ser visto como um estudo poético do corpo, de suas constrições e sua pulsão de liberdade, num contexto muito específico: o de jovens trabalhadores na cidade de São Paulo.
Elias, migrante paraibano, trabalha como assistente de figurinista numa confecção localizada no que parece ser o bairro do Bom Retiro. É um funcionário sério e competente, que conta com a simpatia dos patrões, mas que a certa altura toma uma bronca por não saber distinguir com nitidez as relações pessoais das estritamente profissionais. Entende-se: ele causalmente faz sexo com um colega de trabalho (Lucas Andrade), flerta com outro (Welket Bungué), arrasta a turma toda para baladas gay.
Trabalho e lazer
O embate entre o trabalho e o prazer se entrelaça tenuemente ao conflito de classes, mas este não chega a se desenvolver, mantendo-se mais como sugestão do que como questão central. O importante aqui é observar esses corpos e como eles se movem nos diversos espaços: os gestos constritos e repetitivos do trabalho, os gestos livres e imprevisíveis no lazer (a dança, o futebol, o sexo).
A construção narrativa foge do famigerado “arco dramático” convencional ao investir em episódios que não se resolvem plenamente e não apontam para uma progressão teleológica. Para usar uma imagem afim ao universo profissional abordado, são como retalhos que permanecem mais ou menos descosturados. Mais que uma trajetória dramática ou biográfica, trata-se de observar os personagens em situação, como que num presente contínuo, nessa ânsia pelo aqui e agora que parece caracterizar esse grupo social e geracional.
Do ponto de vista da mise-en-scène, há um alternância geralmente bem-sucedida entre um registro naturalista da vida urbana diurna e noturna e cenas de interiores centradas no diálogo e rodadas no mais das vezes em planos fixos e mais ou menos longos. Com isso, ganha-se em frescor (não confundir com frescura) sem perder em intensidade.
A cidade e o homem
Há pelo menos dois planos em que essas duas instâncias – a cidade e os indivíduos – se fundem lindamente: no primeiro, os colegas de trabalho caminham à noite por uma rua central deserta rumo a uma festa na casa de um deles; no outro, uma turma esfuziante roda em alta velocidade, em carros e motos, para uma balada LGBT. Nos dois casos, o procedimento escolhido é o travelling de recuo, em que os personagens avançam em direção à câmera, que, ao retroceder, incorpora ao quadro um espaço cada vez maior da cidade (ao contrário do travelling para a frente, que circunscreve virtualmente o olhar a um ponto de fuga).
Em sua estrutura heterogênea, irregular, em geral Corpo elétrico incorpora a seu favor a “sujeira” e o “ruído” da cidade e das circunstâncias de filmagem. O resultado final é um filme difícil de apreender, enquadrar, domesticar – como o corpo humano.
Malasartes
Um caso totalmente diferente, quase oposto, é o de Malasartes e o duelo com a morte, de Paulo Morelli. Aqui, a tentativa é retomar, numa narrativa atraente às novas gerações, um personagem clássico da tradição popular luso-brasileira, o pícaro caipira Malasartes. Nesta história específica, o personagem, encarnado pelo talentoso Jesuíta Barbosa, tem que vencer em astúcia ninguém menos que a Morte (Julio Andrade).
A intenção pode ser das melhores, mas o recurso ostensivo a efeitos especiais à la Harry Potter e a paisagens sintetizadas eletronicamente à la O senhor dos anéis acaba por sufocar, a meu ver, o humor singelo e a energia lúdica do universo do personagem. Não se trata de advogar um cinema pobre ou tecnicamente mal feito, mas de esperar uma adequação entre determinado substrato cultural e sua expressão estética.
Se certo cinema popular brasileiro – a chanchada, Mazzaropi, Zé do Caixão, os Trapalhões – investe numa deglutição paródica dos produtos da indústria cultural hegemônica, este Malasartes opera uma espécie de antropofagia às avessas, em que o imaginário popular brasileiro é que é engolido pela roupagem e pelos valores dessa mesma indústria.