Micropolíticas feministas

Política

05.10.16

Há uma imensa novidade no resultado das urnas de domingo: a eleição de mulheres vereadoras engajadas, em igual proporção, no combate ao racismo, nas causas feministas e nas questões urbanas, expressão da desigualdade de classes, todas aqui entendidas nos seus sentidos mais amplos.  Pelo menos três vereadoras – Marielle Franco, no Rio de Janeiro, Taliria Petrone em Niterói, e Áurea Carolina, em Belo Horizonte – encarnam esse fato inédito: mulheres negras e jovens renovando a representação municipal e alterando a desproporção histórica entre homens e mulheres nos parlamentos brasileiros. De quebra, em Porto Alegre, a jovem Fernanda Melchionna também levou o primeiro lugar na vereança,  com uma campanha marcada pelo tema da mobilidade urbana.

Se faço questão de acentuar que são mulheres engajadas no enfrentamento do racismo e da discriminação de gênero e de classe é porque me parece que há mais uma novidade: o avanço da compreensão, no âmbito da teoria e da militância de mulheres, de que nada adianta continuar disputando a hierarquia entre qual desigualdade é pior. Essas vitórias expressivas carregam algo de paradoxal e, acredito, emergem mesmo deste paradoxo. No mesmo ano em que a primeira mulher a ocupar a presidência da República foi deposta por um impeachment, câmaras municipais se renovaram a partir da nova onda de movimentos de mulheres que, nas redes e nas ruas, estão lutando por novas, necessárias e urgentes pautas feministas.

As candidaturas de Marielle, Taliria, Áurea e Fernanda – três delas em primeiro lugar – cresceram no rastro desses movimentos e da indignação com a ameaça a tantas conquistas feministas duramente obtidas. Penso, por exemplo, no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, quando ela chegou a compor um ministério de mulheres que, se não eram maioria, pelo menos indicavam um início de governo pautado por minimizar a histórica diferença entre representação de homens e mulheres na política e na gestão do Estado. O Brasil tinha, então, apenas 11% de mulheres em todas as esferas parlamentares, e uma grande maioria havia chegado ao poder a partir de articulações com homens. Eram esposas, filhas, herdeiras de algum tipo de herança na qual a condição de ser mulher indicava apenas uma relação de legado ou parentesco.

Seis anos se passaram, e aquilo que poderia ter sido o máximo da representação das mulheres no poder foi se tornando descaradamente a expressão do machismo e da misoginia da sociedade brasileira. Vitórias como as de Marielle, Taliria, Áurea e Fernanda se dão no rastro da nova onda feminista e servem para desmontar os discursos que afirmam a primazia da capacidade das forças reacionárias de mobilizar as manifestações de rua de 2013. O fato de serem jovens, três delas,  negras,  moradoras de favela e periferia, confirmam que a pauta local – com ênfase na mobilidade urbana e direito à moradia – deixou de ser secundária em relação ao plano nacional e está sendo pensada como intrinsecamente articulada ao plano federal.

Como ensinaram as brasileiras Heleieth Safiotii nos anos 1970, Lélia Gonzalez nos anos 1980, e como ensina hoje a norte-americana Angela Davis – cujo livro “Mulheres, raça e classe” (Boitempo Editorial) acaba de ser publicado no Brasil, em tradução de Heci Regina Candiani – , o feminismo interseccional, aquele em que, como no título do livro de Davis, entrelaça discriminações de gênero, raça e classe, tem a potência de reinventar e de fortalecer os movimentos de mulheres, como se vê no Rio, Niterói, Belo Horizonte e Porto Alegre. No país que tirou uma mulher do poder há tão pouco tempo, eleger com votação tão expressiva três mulheres negras para vereadoras, dar a três mulheres o primeiro lugar para câmaras municipais, não é só uma marca de transformação política, é principalmente a chance de voltar a sonhar.

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